Nada como irmos directos ao assunto e comermos um pouco de património. Sugiro uns ovos com tomate bombardeados com polvo seco assado, aquele da feira, e salpicado com coentros e malagueta (estes dois são defeito profissional). De seguida umas papas de milho cozidas no caldo de carnes, couves e enchidos. Espalhar as couves num prato, derramar as papas de milho (não muito líquidas) e finalizar com as carnes e enchidos cortados em cubos não muito elegantes. Podíamos ficar por aqui que estava tudo dito em relação a património gastronómico. Sentimos história a passar pelas papilas e cheiros ancestrais que nos enchem de vontade de atravessar oceanos e trocar patrimónios com outros povos. Esta atitude de partilhar e experimentar coisas novas, que ainda nos caracteriza, é o nosso maior património.
Quando me pediram para escrever um artigo sobre património e gastronomia vieram-me duas coisas à cabeça. A primeira foi, eu perdido em corredores infindáveis de enormes vitrinas com variadíssimos exemplares da gastronomia portuguesa, tipo Museu da História Natural versão Bacalhau à Brás mumificado. A segunda foi uma teoria que estudei em biologia há um século atrás. A teoria da recapitulação, que diz que a ontogenia recapitula a filogenia. Calma, não parem de ler. A teoria, e não passa disso mesmo, diz que o desenvolvimento do embrião de uma determinada espécie mostra-nos as fases evolutivas da espécie em questão. Atenção que esta teoria não está provada e muito dificilmente o será, mas é bastante tentadora. Teríamos a possibilidade de revermos toda a evolução da nossa espécie em nove meses. Agrada-me a ideia de existir algo que, de uma forma simples, revele um segredo que sempre quisemos saber, ou mesmo alguma coisa importante que desconhecíamos. Como o ADN que através da sua descodificação poderá revelar quem foram os nossos antepassados ou pelos menos de onde eram ou por onde andaram. E no nosso ADN está de certeza algures gravado que somos uns petisqueiros natos.
Associo muito a palavra património a esta capacidade de nos revelar algo, de nos contar uma história. Podermos olhar para um determinado edifício e vermos para além das suas paredes, vermos como foi construído, quem o construiu, em que condições, será que ouviam música e já agora o que comiam. Podemos percorrer as ruas de uma cidade que conseguiu manter o seu património em pé e sentir a sua história. Podemos olhar para um prato de comida e vermos muitas histórias. No prato de papas de milho que comemos logo no início do artigo vemos as histórias dos nossos pais e avós que se reinventavam todos os dias para dar de comer à família. Podemos até afirmar, depois de conversarmos com os mais velhos, que grande parte do nosso país sobreviveu à base das papas de milho. As receitas são muitas e são pau para toda a obra. São entrada, prato principal e sobremesa. E de manhã são ainda pequeno-almoço com um peixinho frito.
Munidos de todo este conhecimento e cientes da nossa ignorância, partimos para uma viagem a um passado recente mas que nos parece longínquo. Estávamos a preparar a abertura do Restaurante Faina (inserido no contexto museológico do Museu de Portimão, que por sua vez está instalado na antiga fábrica de conservas Feu) e achámos que seria interessante recuperar alguns sabores antigos e inseri-los no Menu. Assim, acompanhados pela antropóloga do Museu de Portimão (Ana Ramos), que foi registando o desenrolar dos acontecimentos, percorremos o concelho de Portimão (Portimão, Mexilhoeira Grande e Alvor) à procura de antigas trabalhadoras da indústria conserveira que estivessem dispostas a partilhar histórias sobre os tempos duros do trabalho fabril e que nos pudessem servir de inspiração para o Menu. Falámos de assuntos importantes, capazes de resolver a maioria dos problemas mundiais. Falámos do que comiam e mais ainda do que não comiam. Peixe seco, a matança do porco, as hortaliças e muita, muita papa de milho. Tentaram também ensinar a técnica ninja de tirar a cabeça, tripas e espinha da sardinha de uma só vez. Os tempos eram duros e a comida era uma tarefa criativa que durava todos os dias do ano.
Alguns meses depois, já com o Restaurante Faina aberto, convidámos todas as intervenientes para um almoço que pretendia resumir todas as conversas que tivemos na expedição em pratos típicos revisitados. Encarei o acontecimento como um exame a toda a matéria dada. Chumbei a milhos de Monchique.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)