Este é um texto que não quereria escrever.
Num tempo de confinamento.
É neste tempo que parece que a cultura é a salvação.
Abrimos as redes sociais, os jornais, as revistas e surgem milhares de propostas para ler livros, ouvir música, concertos, ver filmes e por aí fora …
Como bem disse António Guerreiro, no Jornal Públicode 27/03/2020, «Estas listas ministradas como fármacos doces e agradáveis dizem-nos, pelo menos, duas coisas evidentes. Em primeiro lugar, que os media têm uma concepção pastoril da sua missão, muito especialmente no que diz respeito à cultura, e animados por essa concepção indicam os caminhos que o rebanho deve seguir para não se sentir completamente perdido e entediado, administram lições e conselhos que têm como pressuposto a ideia de que os leitores e espectadores não alcançaram a maturidade nem a autonomia e devem ser colocados sob tutela. (…) »
Tendo a concordar que este tipo de lista nos infantiliza.
Mas nós tornámo-nos crianças perdidas no desconhecido e o nosso anseio de partilhar gostos e de enchermos o tempo e o espaço com os nossos tesouros dá-nos alento e conforto.
E voltamos aos nossos valores seguros. Aquelas obras que estão no cantinho mais secreto do nosso ser.
E também damos uma espreitadela em obras desconhecidas.
E por vezes, embora raramente, escrevamos sobre algo que é importante para nós.
É isso que irei fazer.
Para vos falar de como o cinema – a 7.ª Arte – é capaz de nos preencher.
Hoje estamos impossibilitados daquilo que é sagrado no cinema: o espetáculo em sala escura.
Há até quem afirme que irá haver uma mudança de paradigma e que a lógica de Thomas Edison quando inventou o Kinetoscópio vai prevalecer. Edison inventou um processo filmográfico que consistia essencialmente em duas etapas: após a captação das imagens ser feita pelo cinetógrafo, a sequência de imagens era visualizada através de um óculo dentro de um caixote de madeira. Esse segundo dispositivo era o denominado Kinetoscópio ou Cinetoscópio. Uma pessoa de cada vez introduzia uma moeda e o mundo das imagens em movimento iniciava-se. Era um espetáculo individual que pode ser comparado ao ato de ver cinema em casa.
Edison comercializava a sua invenção nos Estados Unidos, mas também veio à Europa para divulgar orgulhosamente o Kinetoscópio. Foi em Paris que o pai dos Irmãos Lumière viu uma demonstração da nova máquina de reprodução de imagens em movimento. Entusiasmado, regressa a Lyon e convence os filhos – Auguste e Louis – a irem mais longe e a criarem uma máquina que projetasse imagens para várias pessoas.
Auguste e Louis inventaram o Cinematógrafo. A 28 de dezembro de 1895, realizou-se em Paris a primeira sessão de cinema com este novo aparelho. 33 espectadores terão pago bilhete. Sentaram-se numa sala que ficou escurecida e o milagre da imagem em movimento projetou-se na tela. O cinema, tal como o conhecemos, começava!
Esses espectadores exultaram e transmitiram a outros, que passaram o maravilhamento a outros. Contrariando a premissa dos próprios Lumière «O cinematógrafo é uma invenção sem futuro». Não foi.
Assim se têm passado os anos e, se bem que a morte do cinema tenha sido várias vezes anunciada (com o aparecimento da TV, do vídeo, da Internet), nunca tal óbito ocorreu… Porque os amantes de cinema vão sempre preferir o espetáculo coletivo ao visionamento caseiro. O próprio cinema tem-se reinventado com novos formatos, com outro som, com maravilhas da tecnologia e, sobretudo, com temas que nos abrem o Mundo.
Assim retomamos o tempo presente e questionamos o futuro. Será que vai haver a tal mudança de paradigma e passaremos todos a ver cinema como Edison o inventou? É preciso mais uma nota para dizer que Edison se converteu ao espetáculo coletivo e iniciou uma guerrilha sobre a patente do cinema. E irá dedicar-se à realização de filmes para salas escuras. Ironia…
Por isso mesmo considero que a morte do cinema em sala não irá acontecer.
Mas poderemos sempre ver/rever os filmes em casa como forma de um outro prazer – o de termos um outro tempo para a análise.
Regressamos às listas e às conversas online. É um prazer partilhar aquilo que gostamos. É um prazer falar com os outros sobre aquilo que gostamos.
Tempo para o fazer neste momento não nos falta.
Enquanto aguardamos com ansiedade ver um filme em sala de cinema.
Graça Lobo – Técnica superior da Direção Regional de Cultura do Algarve
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de maio)