“A diferença entre o céu e o inferno é de um centímetro”.
Gonçalo M. Tavares (Inspirado em Walter Benjamin)
Imaginemos alguém que resolve convidar familiares e amigos para um petisco. Levanta-se cedo e vai ao mercado escolher as melhores e mais frescas iguarias. Sabe cozinhar bem e esmera-se para elaborar um suculento manjar. Porém, a certa altura, como se de um curto-circuito se tratasse, o entusiasmo dá lugar a uma sensação nefasta. Seja apenas dentro da sua cabeça ou falando alto, há uma ladainha que se impõe a tudo o que estava a fazer anteriormente com alegria. A ladainha é mais ou menos assim: “sou sempre eu a fazer tudo, ninguém mais faz nada, cai sempre o trabalho todo em cima de mim, ninguém me ajuda, sou pau para toda a obra, sobra sempre para o mesmo, etc., etc., etc…”
Esta pessoa tem dificuldade em delegar funções e em dar instruções precisas. Como resultado acaba por considerar as ajudas que se lhe tentam prestar inservíveis, decidindo ser melhor fazer tudo sozinho. De modo que os possíveis ajudantes são demitidos com maus modos. Claro que logo a seguir voltará a mesma ou nova ladainha a queixar-se de que ninguém faz nada e só o próprio é que trabalha.
Este tipo de pessoa tende também a repreender veementemente quando alguém faz alguma coisa errada. Por exemplo, alguém parte um copo e imediatamente pede desculpa. Essa pessoa diz um “não tem importância” com tal tom de voz que quem partiu o copo fica com a sensação de que cometeu um crime da maior importância e que merecia ser condenado ao inferno por isso. Como se não bastasse, o assunto tende a não ficar por aí. Seguem-se uma série de interpelações do género: “Mas porque é que fizeste isso? Não prestas atenção a nada! Já sabias que o copo estava ali. Andas sempre com a cabeça na lua! É sempre a mesma coisa, etc., etc., etc…” Claro que o grande criminoso que partiu o copo se sente muito mal, só quer desaparecer dali para fora. Então, dando-se conta disso, o excelente cozinheiro e anfitrião muda de registo sem nunca parar com as interpelações: “então o que é que foi? Mas porque é que estás assim? Também não se te pode dizer nada! Mas que flor de estufa! etc, etc., etc…” De modo que o incauto ajudante errou triplamente: primeiro porque partiu o copo, segundo porque ficou mal disposto com as repreensões, e terceiro porque não ficou de bom humor imediatamente assim que o excelente anfitrião o entendeu. Claro que a esta altura já toda a gente perdeu a fome! As magníficas iguarias até parece que ficaram envenenadas. E o almoço que poderia ser uma celebração e uma grande alegria é, afinal, um tempo doloroso em que as pessoas ficam juntas por obrigação. Comem sem apetite e até o melhor vinho sabe a fel. O excelente cozinheiro que fez tudo, que se levantou tão cedo para propiciar um magnífico almoço de família, não percebe porque é que, quando no fim de semana seguinte faz novo convite, todos arranjam uma desculpa airosa para declinar a oferta. Soa familiar?
Existe também aquele progenitor a quem o filho entusiasmado quer contar uma peripécia que se passou lá na escola. No entanto, embora a criança mal tenha acabado de falar, foi como se não tivesse aberto a boca ou como se o pai fosse surdo. De supetão, atropela a fala da criança desviando o assunto para outra coisa qualquer, seja o futebol, a paisagem que se avista da janela, ou a mensagem que acabou de entrar no telemóvel e que tem prioridade sobre tudo o resto. A criança é assim deixada ao abandono, perplexa e inexistente. Estes episódios vão-se repetindo ao longo da vida, e um dia este excelente progenitor, queixa-se aos colegas de café que os jovens são uns egoístas, que deu tudo aos filhos e que estes não conversam consigo, que não sabe nada da vida deles, e que tratam a casa como se fosse uma pensão: só aparecem para comer e dormir. E praticamente só lhe dirigem a palavra quando precisam de dinheiro ou se meteram em sarilhos para os quais precisam de ajuda para resolver. Soa familiar?
A frase em epígrafe —A diferença entre o céu e o inferno é de um centímetro —aponta para o estranho facto de que o que dá origem a estas duas realidades opostas não ser algo grandioso. Não se trata de uma diferença de natureza, trata-se apenas de uma diferença de grau. Aliás, trata-se de um pequeno grau, apenas um centímetro, um desvio. Só que é um desvio certeiro para a infelicidade.
O excelente anfitrião perdeu o sentido daquilo que era mais importante: julgou que o principal para uma boa refeição seriam os ingredientes, quando afinal, o mais importante, aquilo que a todo o custo se devia gerar e procurar manter seria o bom ambiente, a alegria, a felicidade de estarem juntos.
Já o atarefado progenitor desvalorizou a pequena peripécia que a criança queria contar. Era algo sem importância e que não merecia a sua atenção. Não se apercebeu que o relevante não era aquilo que a criança tinha para contar, mas antes o facto de ela querer partilhar algo da sua vida com o pai. Só que o pai não ouviu, ou obviou, não quis saber. E esta surdez selectiva criou um afastamento que só aumentou com os anos. E ao adolescente ou jovem adulto já nem lhe passa pela cabeça partilhar o que quer que seja com o seu progenitor.
No filme Sete Anos no Tibetede Jean-Jacques Annaud, Heinrich Harrer (Brad Pitt) e Peter Aufschnaiter(David Thewlis) estão ambos apaixonados pela bela Pema Lhaki (Lhakpa Tsamchoe). A jovem mulher é costureira e os seus admiradores não param de recorrer aos seus serviços para que lhes encurte a bainha das calças, sendo esta a única desculpa que encontram para a ir ver. É inverno e os lagos estão gelados. A certa altura, para impressionar Pema, Heinrich tem a ideia de patinar no gelo, actividade pouco conhecida naquelas paragens. Improvisa patins para os três, e faz um enorme brilharete deslizando pela superfície gelada a grande velocidade, fazendo piruetas e gritando “olhem para mim!” Mas a pobre Pema, que nunca tinha patinado, mal o vê. Está totalmente concentrada a tentar equilibrar-se sobre aquelas duas lâminas escorregadias. Peter vem imediatamente em seu auxílio, ampara-a para que não caia, e pouco a pouco, com a sua ajuda, Pema vai descobrindo o prazer de patinar. Com quem é que o leitor acha que ela casou?
Temos neste caso duas estratégias diferentes para conquistar a amada: a de Heinrich que consiste em tentar que a atenção da amada recaia sobre ele, uma estratégia de exibição que poderíamos denominar de estratégia-pavão; e a de Peter que consiste em reparar ele próprio na amada, prestar atenção às suas necessidades, ser o seu amparo, podíamos denominá-la estratégia do cuidar.
Embora o objecto do amor fosse o mesmo o modo de lidar com ele foi distinto, e esse pequeno centímetro de diferença ditou a escolha da pretendida.
As declarações amorosas incidem normalmente sobre as qualidades do objecto amado: porque tu és tal, tal, tal e tal, eu amo-te. Talvez devessem incluir uma segunda parte em que o amador perguntasse: diz-me o que pretendes, diz-me o que te faz falta, diz-me o que posso fazer por ti.
Será possível corrigir aquele desvio de 1cm, reparar a rota? Talvez a resposta esteja contida na própria palavra – re-parar – voltar a parar, isto é, prestar atenção. Gonçalo M. Tavares no seu livro Atlas do Corpo e da Imaginação diz-nos o seguinte: “Note-se que o termo repararpode significar voltar a colocar em funcionamento ou dar atenção: voltar a parar à frente de algo: reparar, parar duas vezes, parar muito tempo à frente de algo. Aquilo a que se dá atenção volta a funcionar, eis uma definição prática, operacional, quase mecânica, do amor”.
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico