De Profundis, Valsa Lenta, por José Cardoso Pires, Círculo de Leitores, 1998 (1ª edição em 1997), tem na capa um desenho de Mário Eloy intitulado A Morte na Gaiola, obra pertencente ao Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. O que é que singulariza este trabalho de um dos mais eminentes escritores portugueses da segunda metade do século XX? Logo o prefácio, original a todos os títulos, de um grande escritor que não o quis ser para se dedicar à medicina, João Lobo Antunes. Oiçamo-lo, ele prefacia dirigindo-se ao escritor que foi bem-sucedido onde podia ter ficado amplamente inutilizado: “Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória, se suspende a fala, se embota a sensibilidade, se contém o gesto (…) Tentei no passado, sem êxito, devo confessar, que pacientes meus, com patologias e equipamento algo semelhante seu – inteligência, sensibilidade, poder de análise, talento discursivo, distanciamento introspetivo – partilhassem com outros a sua história”.
Escreve as manifestações, o discurso do doente que sofria de uma afazia fluente grave, saiu desanimado do encontro. E descreve com talento sem rival as razões para ter existido um campo de esperança e como tudo veio a acontecer para que o doente, a despeito de certas limitações, voltasse a ser o homem que era no passado. E o médico dá duas explicações. A primeira, o doente tivera sorte, “e não há nada de mal nisso. O inimigo queixava-se de Napoleão por ele ter generais com sorte, ao que o imperador retorquia que não gostava de generais sem sorte, princípio para mim fundamental na prática da profissão. A segunda, é que a área que temporariamente V. deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio, era mais musculada que a do comum dos mortais. E isto não é treta, porque se sabe hoje que os donos do ouvido absoluto, que lhes permite a identificação imediata de qualquer som – e Mozart tinha-o, e de forma admirável –, têm a área auditiva do córtex cerebral indiscutivelmente hipertrofiada”. E despede-se do notável escritor tratando-o por amigo novo. A iminência de que algo de extraordinário se passava vem logo no arranque da primeira página da prosa de José Cardoso Pires:
“Janeiro de 1995, quinta-feira. Em roupão e de cigarro apagado nos dedos, sentei-me à mesa do pequeno-almoço onde já estavam a minha mulher com a Sylvie e o António que tinham chegado na véspera a Portugal. Acho que dei os bons dias e que, embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Reparei na chávena de chá e fiquei. ‘Sinto-me mal, nunca me senti assim’, murmurei numa fria tranquilidade.
Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: ‘Como é que tu te chamas?’.
Pausa. ‘Eu? Edite’. Nova pausa. ‘E tu?’.
‘Parece que é Cardoso Pires’, respondi então”.
E o autor dá sequência aos episódios seguintes, houvera perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, recorda a brancura hospitalar, o registo, as análises, eletrocardiogramas, exames da fala e da escrita, uma TAC, uma inspeção às carótidas, interroga-se sobre o que é que estava a fazer ali, seguiu-se o relatório neurológico: acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada, um coágulo de sangue que tinha subido até à zona nobre do cérebro. Parece uma médica com perguntas a aviar. Questiona-se: “O que restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?”. E a prova insofismável de que o doente retomou a sua costumada arquitetura da escrita tão timbrada de originalidade é que o seu discurso flui entre pensamentos íntimos, conversas havidas com a mulher, umas vezes na primeira, outras vezes na terceira pessoa, acendem-se recordações espúrias, uns ensaios de escrita, completamente incongruentes, é o estado de desmemória, e parece que o doente confessa ao escritor: “Atentem, atentem nele: chegam amigos a visitá-lo mas ficam-lhe no limiar da recordação. Pelo desfocar da vista, por certas expressões evasivas ou por certas sensibilidades, percebe-se que não é capaz de os localizar com clareza. A um deles, sei eu que lhe vi os olhos toldados de lágrimas e que teve o impensável vislumbre de estranheza, o que era aquilo, parecia perguntar – mas frio, terrivelmente frio”.
E há o renascimento, um trânsito para a outra pessoa que ele foi, os trabalhos da retoma da memória, entre ele e o outro, interroga-se que ali não há loucura, está num quarto rodeado de dois candidatos à morte no maior dos carnavais, agora sim, temos a marca de água da sua escrita singular, a sua observação dos dois doentes que com ele convivem, a sua mente tateia, pega em expressões e dá-lhes um significado onde procura congruência, é prudente neste desfazer das trevas brancas, caminha vagarosamente na reposição da normalidade. E um dia tem alta: “Pronto. Cá vou eu, de Lisboa ao sol, cá vou eu, e agora, passados meses, já sentado diante destas folhas de papel, redijo-me em capítulo de liberdade a atravessar a capital com a Edite ao volante. Regressava a casa em saudação de Primavera em pleno mês de janeiro. Para trás ficava a pesada babilónia do Hospital de Santa Maria onde àquela hora um cirurgião rodeado de toda a sua equipa a reconstruir o cérebro de alguém suspenso entre a terra e o céu”. E despede-se, um tanto do outro, aquele que adoeceu, como vimos no início do seu registo, e quer que o leitor tome nota, para que não subsistam dúvidas: “Vou interrogando e retendo, apurando a caligrafia da recomposição, e quando chega o convite do meu companheiro de hospital para uma celebração de lagosta com champanhe, não hesito em fechar e pôr assinatura no texto. Disse e vivi, Acta est fabula. Como despedida, a festa anunciada parece-me uma vinheta condigna mas, se me é permitido, acrescento-lhe um fio de música”.
Asseguro-vos que nada de tão alquímico, quase pirotécnico, conheço da arte da grande escrita. José Cardoso Pires despede-se assim: “Penso que nenhum escritor que ama realmente a vida se justifica com a posteridade no seu esforço de perfeição e nos seus fracassos e que nenhum trabalha a sua obra como se tecesse um requiemde si próprio”.
De leitura obrigatória.