Em meados do século XV, a chegada ao Algarve das primeiras cargas de cativos africanos trazidos por mar desde a África atlântica, traficados e vendidos como mercadoria na Europa da Era Moderna abriu um novo capítulo na história da região e do país. Para lá da aversão que suscita a sujeição e o maltrato infligido a esses seres humanos, arrancados à força às suas comunidades de origem e desapossados dos seus haveres materiais, haveria de ter como consequência um encontro e miscigenação de culturas: africanos e afrodescendentes haveriam de impregnar a cultura portuguesa, e esse seu legado constitui, nos nossos dias, um dos mais ricos elementos diferenciadores do nosso património cultural comum.
A presença de africanos escravizados na sociedade algarvia (10% desta, no século XVI) está amplamente documentada pelos testemunhos escritos: desde o episódio de 1443, do desembarque e venda dos escravos em Lagos relatado por Zurara, até 1761, com a proibição legal do tráfico negreiro em Portugal. Conservam-se às centenas os documentos de posse, as cartas de alforria, os assentos de baptismo e de óbito, os regulamentos municipais e a documentação das várias confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Presença de que os africanos sepultados entre os séculos XV e XVII, ao arrepio dos cânones, numa lixeira urbana, ainda também em Lagos, dão um impressionante testemunho palpável, constituindo, aliás, uma das mais importantes descobertas arqueológicas portuguesas dos últimos tempos, com repercussão internacional.
Mas, além desses testemunhos histórico-arqueológicos, é incontornável o legado que africanos e afrodescendentes embeberam na nossa cultura, uma herança centenária que resulta de uma trajectória comum e que não é mais possível branquear.
Esse legado e as memórias do tráfico negreiro permitem-nos reflectir sobre as questões conceptuais específicas da temática da escravatura e gerir essa herança cultural, fazendo dela um mote de criação contemporânea. Ainda, e sempre, em Lagos, a direcção do LAC / Laboratório de Actividades Criativas concebeu um projecto de residências artísticas (que em 2017 teve a sua quarta edição) que procura integrar o processo de criação como forma de discutir a história do tráfico negreiro e da própria cidade, a partir dos lugares de memória da novidade africana e da sua incorporação nas vivências locais, que se prolonga até aos nossos dias. Também, e sempre, em Lagos, o Município dedicou inteiramente às histórias e memórias da “Rota da Escravatura” um dos núcleos do seu Museu Municipal, instalando-o (em 2016) no emblemático edifício conhecido como “Mercado de Escravos” – na verdade, a antiga Vedoria militar. São apenas dois exemplos que demonstram todo o potencial de gestão desse legado cultural que resultou da tragédia do tráfico negreiro mas que nos permite discutir aquilo que significou a escravatura no âmbito do modo de produção capitalista e a sua persistência nos dias de hoje, sob outras formas, bem presentes nas levas de migrantes africanos por todo o mediterrâneo e nos protagonistas em certas explorações agrícolas e nas indústrias do sexo.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Janeiro)