Na crónica anterior, descrevi como, após um pausado jantar, eu e o Mestre António Homem Cardoso tínhamos discutido o conceito de cultura, enquanto caminhávamos por Tavira à beira do rio Gilão (ou seria o Séqua?), ao ritmo sincopado imposto pelo Mestre ao registar o que ia vendo. Suspeito que a ausência de conclusões sobre esse tema extravagante, terá sido não uma consequência desse pára-arranca, mas efeito da lassidão que acompanhou a digestão do nosso jantar e também, confesso-o, da minha falta de jeito.
Voltando ao tema quero dizer que, cá para mim, o António é um romântico que ficaria muito bem num grupinho com o Byron, o Hugo, o Garrett e outros do mesmo quilate. No grupo dos que pensam a cultura como um espírito partilhado por todo um povo, presente em todas as suas manifestações, desde a língua às crenças, passando pela arte e pela própria história. Não penso assim. Separar a cultura da educação é perigoso, assim como o é separá-la da arte. A cultura não pode ser vista como uma crença cega das tribos. A cultura exige acção, impõe uma disposição volitiva.
“Então e as igrejas, e os palácios, e as pontes, e todos os adornos que neles cabem, e os livros, e os cânticos não são cultura, mesmo após as tribos, como tu dizes, terem desaparecido?” – perguntava-me o António referindo-se ao passeio nocturno que nos levou da ponte “romana” até aos muros do antigo castelo, passando pelos adros das igrejas e capelas e ermidas que pontuam as antigas vias de Tavira – a de Santa Maria, a do Carmo, a do Espírito Santo, a do D. Sebastião e ainda outras.
“São, de um certo modo são, mas só de um certo modo” – dizia eu – “A existência de monumentos na posse de um povo não representa obrigatoriamente cultura”.
“Homessa!”(1) – insurgia-se o António – “Então todos estes edifícios excelentes que temos visto desde lá de baixo do rio não serão cultura? Uma cultura que, para mais, pertence aos tavirenses por direito próprio e depois aos portugueses em geral”.
“Deixa-me fazer-te uma pergunta” – retruquei – “Lembras-te das estátuas destruídas pelo Daesh na Síria e no Iraque? Achas que antes de serem destruídas eram cultura daquele povo mas depois perderam esse estatuto? Não. Em momento nenhum pertenceram ao património cultural desse povo, porque a cultura é um feixe de relações recíprocas entre o homem e o meio. Do meu ponto de vista, o ódio pela cultura não pode ser ele próprio cultura. Pelo contrário, a ligação amorosa de uma comunidade a um determinado património transforma-o em cultura.”
O António mirou-me com aqueles olhos sábios que parecem radiografar-nos a alma e lançou-me o seguinte repto: “Estás-me a baralhar com tanta erudição. Ora vamos lá ver se me consegues dizer qual destas duas é a mais cultural” – e mostrou-me no visor da sua máquina fotográfica duas imagens nocturnas do rio Gilão (ou Séqua?) e duas pontes: uma, a ponte dita romana e a outra a ponte moderna, ex-militar.
Em qual delas se sentia mais a cultura, perguntava o António. Pergunta absurda. Via-se mesmo que não entendera nada do que lhe dissera sobre a cultura estar ligada ao desenvolvimento do indivíduo integrado numa comunidade. Duas pontes. Com franqueza! Porém, o António não era homem para tiradas gratuitas. Forcei-me então a olhar as imagens e deixar-me envolver pela nostalgia das luzes douradas que cintilavam no cenário escuro das águas e das pedras limosas descobertas pela maré vazante; depois de alguns minutos, algo mais parecido com uma questão do que com uma conclusão começou a tomar forma no meu espírito:
O que o António formulara, talvez involuntariamente, era uma questão filosófica sobre a natureza da vida e da existência, atendendo a que “natureza”(2) de uma coisa é o conjunto das principais características dessa coisa. Nesta perspectiva, a filosofia é o estudo do significado, natureza e essência da vida ou, como resumiu Martin Heidegger, a busca pelo homem do significado da realidade. Vamos então filosofar:
Qual o significado das duas pontes que o António me mostrara? Qual delas me presenteava com superiores conjuntos semióticos? Se conseguisse responder a essa pergunta poderia simultaneamente encontrar a resposta à pergunta inicial: “…Qual destas duas é a mais cultural?” Posso desde já informar o estimado leitor – poupando-o deste modo a uma leitura frustrante – que não consegui encontrar a chave deste enigma, mas que convido os eventuais interessados em saber como é que descalcei esta bota, a ficarem comigo mais umas linhas.
A ponte dita romana tem uma história que começa no dealbar do primeiro milénio, passa por suicídios lendários, demolições e reconstruções, desabamentos parciais pela força da corrente do rio (deveria dizer “dos rios”?), pedonalização e, finalmente, entronização como ex-libris turístico de Tavira. Os passeantes contemplam as águas e as suas margens, clicam nas câmaras dos seus telemóveis; os enamorados sentados nos bancos de pedra sussurram coisas uns aos outros; cãezitos fazem xixi nas vetustas pedras. Todos circulam devagarinho. Não é uma ponte dada a pressas. É, verdadeiramente, uma “slow” ponte, em consonância aliás com a saborosa lentidão reclamada pelos tavirenses para a sua cidade.
Ok, isto são coisas que sei, ou melhor, que li, mas que senti eu ao olhar a imagem da ponte romana? Senti paz; fez-me lembrar, em menor escala, a Ponte Carlos em Praga. As luzes a reflectirem-se verticalmente nas águas a gerar um movimento espiritualizado de ascensão. A luz dos candeeiros a tentar imitar a luz polida da Lua cheia. Custa-me dizer que tudo isto não é cultura, sobretudo se assumir que a bela ponte é amada, juntamente com toda a sua história, pelos tavirenses e pelos seus visitantes.
Para além dos arcos da ponte, porém, há uma luminosidade estranha, muito branca, que estraga de algum modo esse efeito pacificador. Apercebo-me de súbito que essa luz provém da ponte nova, exactamente a segunda fotografia do António. O maroto fez isto de propósito! Para entender a ponte romana – segundo ele – é pois necessário compreender a ponte nova e vice-versa. As duas pontes geram pois significados recíprocos.
Vejamos então a ponte nova de mais perto, a partir de umas coisitas rebuscadas na rede: esta veio substituir a ponte militar (provisória) construída após as inundações de 1989 e que se tinha degradado imenso nos seus quase trinta anos de serviço; pode dizer-se que está em plena infância, mas Ui!, que gestação difícil e demorada ela teve, coitadinha. A sociedade civil (sim, existe…) levantou-se em peso contra a decisão camarária, o projecto, os custos, as características, a duvidosa utilidade da dita ponte: o Armagedon! Parece ter sido mais repelido que desejado, este demónio de betão, “uma lança no coração da cidade”, conforme se dizia.
Esta rebelião civil, por estranho que pareça, é cultura, porque qualquer manifestação cívica o é, independentemente do seu sucesso. Mas vejamos agora o que sinto ao olhar a fotografia: sinto a luz e o seu reflexo, um todo metálico, vibrante, simétrico; claramente uma união, uma passagem, algo que não é para estar mas para ultrapassar. Rapidez. Simplicidade. Modernidade. É uma resposta à tradição e também ela, um dia, será uma componente cultural, uma nova célula do cimento que une gerações.
Qual das duas é a mais “cultural”? Lastimo, amigo António, mas isso eu não sei.
(1) “Será que a palavra “homessa”, que já ninguém usa, poderá ter atingido pela sua raridade um estatuto de património e ipso facto de “cultura”?
(2) Segundo o Dicionário de Filosofia da Universidade de Cambridge.
Mas muitos outros mundos lá estão vibrando, a chamar a nossa atenção. A realidade e o seu onírico reflexo. A separação e a travessia. A estrutura e o caminho. O homem e a natureza. E outros ainda, tantos quantos conseguirmos pensar. Peço emprestado ao “Querido Manuel” uma bela descrição que se enquadra muito poeticamente na minha reflexão. Diz ele:
“O Sol do poente, estilhaça de lume os vidros das janelas. Intenso, vermelho-vivo, irradia do horizonte. Penetra tudo. Tinge o mar, o céu, as casas, e há um momento em que tudo, natureza, casas, pessoas, se aquieta como que num espanto”.6
Obrigado, Manuel da Fonseca. Eu já escolhi o meu sentido: há um homem que caminha pensativo. Parece descer de um plano mais elevado para outro mais baixo. Os dois caminhos, o real e o seu reflexo vão encontrar-se no horizonte. “Tudo se aquieta como que num espanto”.Soberbo! O espanto do real e o real do espanto.
Está decidido, António. Vamos de comboio.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico