Todos nós já assistimos, provavelmente, às consequências que a depressão pode ter em quem nos é próximo. Possivelmente até já a conheceram por dentro, na própria pele, ou de perto, com familiares ou amigos. Eu sei que passei dias a observar alguém que se sentava em silêncio na sala e ficava a fitar a televisão, umas vezes sem som, outras desligada. E ficava assim todo o dia, levantando-se quase de tarde e rondando a casa durante a noite. Para adormecer a dor era preciso adormecer a mente. E para muitas pessoas, a depressão é apenas uma “mania”, uma moda, um ócio de gente desocupada… Até que calha acontecer-lhes. Mas a verdade é que pode inclusive matar, como aconteceu há bem pouco tempo com o suicídio de mais uma figura pública.
Depois de Jogos de Raivae O Pianista de Hotel, o novo romance de Rodrigo Guedes de Carvalho, Margarida Espantada, publicado pela Dom Quixote, é descrito pelo autor como uma história sobre família, mas também sobre «violência doméstica e doença mental. É um efeito dominó sobre a dor.»
Esse efeito dominó representado na própria capa pode ser entendido como uma falsa calma que reina sobre os dias e que, subitamente, se desmorona, pois um ínfimo gesto ou uma situação aparentemente banal podem espoletar uma reacção em cadeia, despertando sentimentos reprimidos mas latentes. E pode ter consequências nefastas até para os que estão isentos dessa dor, como acontece com o caso descrito do avião despenhado… Mas este livro vai muito além da depressão, adentrando-se no lado obscuro da mente, passando pela demência, pelo mal (porque este é também um livro sobre a violência doméstica e aqueles que tiram gozo da dor infligida), pela dissociação de personalidade, pelas perturbações e transtornos mentais. Não é por acaso que Joana Ofélia estuda para psicóloga. Em torno da personagem principal que, como o título aponta, é Margarida, sendo também aquela sobre quem menos sabemos – e aquilo que se saberá é sempre a partir da perspectiva dos irmãos e dos outros – chega a haver epsiódios que nos aproximam do sobrenatural, não fosse o caso de sabermos estar a lidar com uma personagem deprimida e fortemente medicada.
A ironia atravessa a narrativa, com uma intenção de forte crítica social
Na primeira parte do livro, a narrativa é mais hesitante, lançando pistas que são retomadas na parte final, e parcelada, alternando entre personagens, com constantes analepses e prolepses. Se, primeiro, parece tratar da violência doméstica, depois, conforme conhecemos os vários membros das duas gerações da família Duval, as várias pontas enlaçam-se e percebe-se que além de um pendor agressivo transmitido de pai para filho, houve algo mais herdado geneticamente. Sabe-se, por exemplo, que os irmãos Manuel Afonso e Margarida Rosa têm em comum um comportamento com «ecos de espectro muito mais suaves e espaçados» no primeiro e «mais constantes e gritantes» na segunda (p. 124). Mas no seio desta família disfuncional, em que quase todos se encontram sozinhos, ou com problemas sérios nos seus relacionamentos, a solidão surge associada à incapacidade de amar o próximo, à excepção de Joana Ofélia, a “benjamim” da família. À solidão comum a todas as personagens subjaz um sentimento de frustração – o que já surgia no romance anterior do autor, O Pianista de Hotel. Aproveitamos também para destacar a referência intranarrativa que é feita a essa outra obra do autor, a certa altura, deixando esse jogo de descoberta a cargo do leitor.
A voz narrativa é distanciada, como quem faz um relato (é curioso que este livro tenha saído primeiro em audiolivro, e narrado na própria voz do autor – se bem que foi a pandemia a principal causa que levou a isso), não permitindo propriamente um envolvimento com as personagens. A prosa é muitas vezes torrentosa, com frases que se distendem em gradações e repetições e enumerações (a copulativa eé constante). A ironia atravessa a narrativa, com uma intenção de forte crítica social que chega, por vezes, ao vitupério e à obscenidade do vocabulário como forma de chamar o mundo à razão. Os próprios nomes das personagens denotam alguma ironia, constituíndo-se quase sempre como binómios sonoramente estranhos (Paulo Paulino, Aida Vanda, Margarida Rosa, Joana Ofélia). Torna-se difícil entrar verdadeiramente na história, mesmo nos capítulos finais, de maior tensão narrativa, que alternam entre a inspectora e o psicólogo forense, na sua “perseguição” automóvel, e o que terá acontecido entre os irmãos. Porque a intenção principal da narrativa parece ser a de denunciar o “desconcerto do mundo” (particularmente no capítulo 33, com a enumeração de tudo o que vai mal no mundo, quando Margarida já não consegue continuar e perde as defesas, o filtro). É também quando «o horror do mundo explode na cara de Margarida Rosa» que tudo se precipita pois, ao saber da morte da irmã (e daí que, conforme o nome indica, Ofélia é também o cordeiro sacrificado ou o fim da bondade possível), Margarida (espantada) deixa-se levar pela única via que conhece, desde criança, de saber lidar com o mundo… quando se deixa submergir na consciência de outrem.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de julho)