Maremoto, de Djaimilia Pereira de Almeida, autora publicada pela Relógio d’Água, que relançou inclusivamente o seu primeiro romance, Esse Cabelo(anteriormente publicado pela Teorema), é um pequeno livro, de capítulos em geral curtos, com cerca de 3 páginas cada, de prosa vigorosa, numa voz original despida de pretensões a desfiar uma história cujo impacto e irresolução perdurará no leitor. Num registo predominantemente na primeira pessoa, o leitor partilha do fluxo nem sempre ordenado dos pensamentos do protagonista, ficando a conhecer a vida de um mendigo, nas suas angústias e pequenas alegrias. Boa Morte da Silva é um arrumador de carros, ex-combatente colonial, mais ou menos efetivado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa, que escreve para a filha Aurora – note-se o contraste simbólico entre o nome do pai e o da filha. Os papéis que (nos) escreve, e que procura conservar com todo o cuidado (são aliás o seu único bem), as palavras jogadas ao vento, oscilam entre a certeza de querer passar o seu testemunho de vida à filha que nunca viu, e que ora anseia por reencontrar, numa expectativa que o mantém vivo, ora admite poder nunca voltar a ver: «no fundo sei que falo sozinho. É só porque teu nome, tua ideia, é minha respiração. És a minha vírgula, filha.» (p. 66)
Esse registo das ninharias dos dias, «longa-metragem que é o curso dos meus erros e das minhas glórias» (p. 49), confere ao livro uma natureza metaficcional, como se fossem estes papéis que realmente mantêm viva a personagem, mais do que a ânsia de reencontrar Aurora: «Não preciso de propósito para continuar com a papelada, mas ela me pede que eu esteja vivo no momento em que pouso aqui a caneta.» (p. 65)
O registo deste narrador homodiegético alterna, contudo, com alguns capítulos escritos por um narrador na terceira pessoa: é nesses momentos que a prosa descola em arroubos poéticos. No entanto, mesmo quando se muda a perspetiva da história, permanece uma isenção da autora naquilo que mostra, numa linguagem crua, credível. Há ainda assim algumas passagens em que, subtilmente, se contrapõe a miséria humana da personagem à opulência de certas zonas comerciais: «Dias e dias sem pegar no serviço, a comer da caridade, um homem se sente um trapo, menos do que um trapo, filha, me sinto um nada, Chiado, lugar bonito, quando estou bom vou até à loja das luvas, fico a ver as montras de luvas de senhora, lojas de café e de chocolates, lojas de atoalhados, vou vendo as prendas todas que te queria enviar: croissantsacabados de sair do forno, toalhas turcas, bombons.» (p. 23).
Ainda que a voz narratorial pareça deixar tudo a cargo do protagonista, sem emitir parecer ou opinião, logo na primeira página assume-se que esta narrativa parte de uma suposição, quando cruza a história da rapariga que vivia na Rua do Loreto, na paragem do 28, umas ruas acima daquela onde o ex-combatente estacionava carros: «Ter-se-ão cruzado ou não, terão conversado ou não, foram contemporâneos como duas árvores, dois cães vadios, são contemporâneos.» (p. 9)
Boa Morte veio de muito longe, «da província do Cunene, nativo de Evale, terra de mandioca» (p. 16). Oriundo do Sul de Angola, nascido em 1938, filho de pai desconhecido, neto de pastores, chegou a Lisboa no dia 22 de junho do ano de 1979, «com a roupa do corpo» (p. 21).
Um ex-combatente que carrega o erro do que terá feito à mãe de Aurora, provocando a sua ausência definitiva, que acabou em sangue: «Olhava para a tua mãe, via um bocado de carne em sangue. Agora, nem sou capaz de escrever o nome dela, não sou digno de o dizer, esse animal dentro de teu pai está hoje enjaulado.» (p. 23). Boa Morte tem também em si (e é este um dos pontos fortes da história, ainda que pouco explorado) a mancha de ser um combatente da guerra colonial que servia os portugueses: «preto que mata preto tem de sofrer amargamente» (p. 25).
O livro tem ecos desse clássico que é Fome, de Knut Hamsun, na forma como a personagem agoniza com o que não tem para confortar o estômago e a existência. Porque, ainda que nos pareça indigna a sua ocupação, é ela o garante do seu pão. Ironicamente, Boa Morte é reconhecido pela sua «barriga anafada, grávido de morte» (p. 24), pois a sua fome e a sua dor alimentam uma hérnia que o come por dentro.
Mais angustiante ainda do que a fome, porém, é a solidão. À volta de Boa Morte há alguns que lhe são mais próximos, e que não vivem muito melhor do que ele; mas aquilo que é mais bem trabalhado na narrativa é a apatia social, a sensação que faz mudar de passeio um transeunte, ou olhar através dos que passam: «Viam-no assim, do outro lado do vidro, estátua a acenar aos dotados de movimento, sem chegar perto, como a plateia vê os actores no palco e sente a sua dor, ri os seus risos, a uma distância.» (p. 32)
Isto não impede que Boa Morte viva da observação dos outros, entranhando as suas vidas ao ponto de lhes conhecer as rotinas: «O pensamento adormece, sou só olhos, apenas olhos em movimento e, a meio do dia, (…) ocupo o meu assento feito lente que vê tudo aquilo em que os outros não reparam. Ninharias que são prenda para mim dia após dia, são comida no termo ao fim da noite.» (p. 44)
Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em 1982. É autora de Luanda, Lisboa, Paraíso,publicado pela Companhia das Letras(Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2018 e Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz 2019) e de outras obras, como Pintado com o Pée A Visão das Plantas(ambos de 2019).