Quando Mary acorda num hospital de Londres – sabemo-lo porque a contracapa acaba por o explicar, pois na verdade o leitor apenas encontra sugestões –, começa um périplo pela cidade em que percebemos que, primeiro, Mary se depara com as outras pessoas, através das quais tenta perceber o mundo que a rodeia, como se o visse pela primeira vez, e, segundo, tenta recuperar a memória da sua vida anterior, pois Mary afinal é uma «amnésica», num mundo que parece estar em chamas.
A perseguição da memória de Mary Lamb, aliás Amy Hide, surge como uma alegoria e reflexão da vida, feita de parâmetros ditos normais (um emprego significa vender o tempo), feita da rotina, feita de pessoas, e feita substancialmente de livros (para Mary e para grande desconcerto dos que a encontram): «Uns quantos livros estavam mortos – estavam vazios, não tinham realmente nada dentro. Mas alguns estavam vivos: expandiam-se para nós parecendo conter todas as coisas, como oráculos, como alefes. E quando ela se orientava para acordar cedo, eles estavam ainda abertos na mesa, bem conscientes do seu poder, aguardando friamente.» (pág. 133)
Há ainda laivos de distopia neste livro, como acontece, por exemplo, com os corpos dessas outras pessoas com que Mary se vai cruzando: «Havia muitos corpos realmente maus à volta de onde viviam, com falta de bocados ou bocados acrescentados, ou torcidos, ou esticados. Portanto, Mary estava satisfeita com o seu; e era tudo muitíssimo interessante.» (pág. 66)
Martin Amis, autor publicado pela Quetzal, faz ainda, como não podia deixar de ser, uma crítica subtil ao mundo na era do capitalismo, um mundo que vive essencialmente de sexo e de dinheiro, os principais bens a oferecer: «Pensava que era a vida que era pobre. Agora sabe que não precisa de ser – pobre, pobre, não, nesse sentido. Pensava que o dinheiro só acontecia nos livros. (…) A vida é interessante, a vida tem muito que se lhe diga, mas a vida pode ser tremendamente pobre. Agora Mary sabe isso. Viu o suficiente das pessoas abastadas, mal-encaradas nas lojas e nos carros. Não quer o dinheiro delas; só quer o tempo delas. E a mudança da luz diz-lhe qualquer coisa sobre os pobres e o inverno.» (pág. 182-183)
Intrigante, enigmático, desconcertante, são muitos os adjectivos que se podem aplicar a este livro também rotulado de «thriller metafísico», mas é certo que cativa e seduz o leitor, mantendo-o preso.