Foram investimentos feitos “com o coração” e por amor à terra porque o lucro era apenas uma miragem – engenheiros, professores e outros profissionais fora do turismo abriram ao longo da pandemia uma série de hotéis de charme em locais remotos no interior do país. Trata-se de projetos turísticos na Serra da Estrela que foram erguidos através das economias pessoais, muitas vezes em terrenos de família que estavam abandonados. Passado o período mais difícil, a pandemia traz agora a estes projetos perspetivas de futuro.
O HOTEL DE CINCO ESTRELAS QUE NASCEU NUMA DAS ALDEIAS MAIS POBRES DA SERRA
A pequena aldeia Lapa dos Dinheiros, no concelho de Seia, acabou por beneficiar durante a pandemia da abertura de um hotel de cinco estrelas, cujo núcleo é um conjunto de casas tradicionais da povoação que estavam devolutas.
O hotel de montanha Casas da Lapa surgiu da iniciativa do engenheiro civil Nuno Bravo, natural da aldeia, e da sua mulher Maria Manuel Silva, professora de ciências farmacêuticas na Universidade de Coimbra.
Com spa, piscina interior e duas piscinas exteriores, o hotel Casas da Lapa resulta de investimentos pessoais num projeto que ascendeu a 1,5 milhões de euros. Foto D.R.
O projeto começou com o casal a comprar pequenas casas na aldeia que estavam desabitadas, com vista a reabilitá-las para criarem um turismo rural – lançado há 11 anos, inicialmente com seis quartos, uma piscina exterior e já com serviço de refeições.
A ideia nasceu de uma viagem a Itália em 2001. “Estava a fazer o doutoramento e percebi que havia uma grande valorização dada ao agroturismo que não havia cá. E percebemos a Lapa dos Dinheiros tinha todas as condições e potencial para um projeto com estas características”, conta Maria Manuel Silva.
A pandemia, em março do ano passado, apanhou em cheio a obra de profunda remodelação que o casal decidiu avançar nas Casas da Lapa, envolvendo 1,5 milhões de euros e cinco anos de encerramento enquanto as obras decorriam. “Foi um choque enorme levar com uma pandemia depois de todo o esforço que tínhamos feito e um período tão longo de obras”, conta Maria Manuel Silva.
A professora de farmácia na Universidade de Coimbra Maria Manuel Silva e o engenheiro civil Nuno Bravo quiseram prestar um tributo à aldeia natal com o hotel de montanha. Foto D.R.
O investimento foi ultimado durante o primeiro confinamento, mas com todo o cuidado a nível dos detalhes e na firmeza de ser um projeto “com uma componente emocional forte, que nasceu da ligação familiar à aldeia – é o projeto das nossas vidas que está aqui”, frisa a professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra.
“Achámos que fazia sentido criar um espaço de grande qualidade e com sofisticação dentro de uma aldeia simples. É o projeto das nossas vidas e um grande orgulho”
“Sempre acreditámos no potencial desta aldeia, que está dentro do Parque Natural da Serra da Estrela: tem rotas pedestres, é um lugar excecional para turismo de natureza e achámos que fazia sentido fazer um espaço de grande qualidade e com sofisticação dentro de uma aldeia simples”, explica Maria Manuel Silva.
As Casas da Lapa reabriram em junho de 2020, com o espaço totalmente reformado e ampliado para 15 quartos, dos quais oito são suites, além de contar com um spa e uma piscina interior aquecida. O projeto envolveu a construção de dois novos edifícios e de uma segunda piscina exterior, numa linha arquitetónica que procurou conjugar elementos tradicionais – como a pedra – com um design mais contemporâneo.
Manter a obra num padrão alto na aldeia serrana, numa altura em que o país estava confinado, “foi terrível e passámos muitas vicissitudes”, diz Maria Manuel Silva.
O projeto ficou à margem dos apoios covid. “Houve apoios ao turismo mas no nosso caso não pudemos beneficiar, o que tornou o embate mais forte. Os apoios que existiam era para quebras de faturação e manutenção de postos de trabalho, que nós não tínhamos porque estávamos fechados há cinco anos.”
O projeto procurou conjugar elementos tradicionais, mantendo a pedra sempre que possível, com um design mais contemporâneo. Foto D.R. João Armando Riveiro
Mas o esforço do casal acabou por ser compensado e o hotel de montanha – que tem uma cascata à entrada e permite uma série de experiências ao ar livre – revelou-se adequado ao que ditavam os tempos de covid. “Nos dois últimos verões temos beneficiado da maior procura que existe pelo interior e da descoberta pelos portugueses da Serra da Estrela – facto que a pandemia acelerou, o que prova que o investimento é viável.”
Mas Maria Manuel Silva frisa que uma coisa são as perspetivas de retorno a nível de procura e outra são as de pagamento do investimento, feito à custa de economias pessoais. “Vai demorar mais tempo a pagar o investimento e não queremos acumular prejuízos”, refere, lembrando que o objetivo que prevalece ao do lucro é o da gratificação de ver “muitos hóspedes a virem repetidamente e alguns pela terceira vez”.
A biblioteca do hotel integra uma sala de leitura no que antigamente se chamavam ‘buracas’, grutas escavadas na rocha para salgar carnes ou guardar utensílios. Foto D.R. João Armando Ribeiro
A pandemia de covid-19 também levou o engenheiro e a professora universitária a ver o projeto com outros olhos. “O facto de termos o hotel pronto e fechado no primeiro confinamento faz-nos pensar em adequar o projeto a cinco estrelas”, conta Maria Manuel. “Ter um hotel de cinco estrelas numa das aldeias mais pobres da Serra da Estrela é algo que nos enche de orgulho”, sustenta Maria Manuel Silva, lembrando que “o Portugal no interior é outro” e que o projeto se insere “numa aldeiazinha que há 50 anos era quase medieval”.
Maria Manuel Silva e o marido, Nuno Bravo, continuam a viver em Coimbra e a manter as suas profissões, acompanhando “muito de perto” o projeto turístico na aldeia Lapa dos Dinheiros, que também se destaca pelo trabalho inclusivo.
O projeto começou com o casal a comprar casas desabitadas nesta aldeia no concelho de Seia. Foto D.R. João Armando Ribeiro
“Os nossos funcionários são em grande parte da terra, temos uma equipa de 14 pessoas muito dedicadas e com amor à camisola”, conta Maria Manuel Silva. “Temos uma funcionária com défice cognitivo que faz um excelente trabalho como copeira ou desempregados de longa duração de fábricas que fecharam e estão muito contentes com o trabalho que fazem”, exemplifica. “Temos ainda pessoas de várias cores e nacionalidades, o que para o nosso projeto também é um motivo de orgulho.”
O ENGENHEIRO QUE CRIOU UM RESORT NO CENTRO DA COVILHÃ
No centro da cidade da Covilhã, o hotel Pena d’ Água abriu em dezembro de 2020, quando o país enfrentava restrições associadas à covid-19 no período de inverno e em vésperas de entrar num confinamento apertado.
O projeto foi feito pelo engenheiro Rui Barata, que se assume profundamente empenhado em obras de reabilitação. Recuperou a traça histórica de um palacete no centro da Covilhã, que inclui extensas áreas exteriores totalizando 3.500 metros quadrados, incluindo uma nascente de água na parte traseira do hotel onde no séc. XVII eram dadas “penas de água” às famílias nobres.
O hotel Pena d’Água abriu no centro da Covilhã em dezembro de 2020, quando o país enfrentava sérias restrições com a covid. Foto D.R. Ricardo Oliveira Alves
“Tínhamos o hotel pronto em meados de outubro e só não abrimos por causa da pandemia”, adianta Rui Barata. A abertura em dezembro deveu-se “a uma janela de oportunidade que houve entre o Natal e o fim do ano – tive imensas reservas para janeiro e fevereiro mas foram todas canceladas. Até ao verão foi uma ‘salsada’ a lidar com reservas e cancelamentos”.
O engenheiro enfatiza que colocou todo o seu esmero neste projeto pessoal, cuja obra foi finalizada durante a pandemia – “a construção civil não foi proibida de trabalhar, embora o ritmo fosse mais lento”.
O investimento foi avançado por Rui Barata, engenheiro civil que tem um interesse assumido por reabilitação. Foto D.R.
“Este imóvel requeria uma requalificação séria e honesta para ajudar a promover algo que não existina no centro histórico da Covilhã”, sublinha Rui Barata. “Trata-se de uma mansão do final do século XIX, com características próprias, e tinha de haver muita sensibilidade para manter o edifício tal como era.”
“Acredito que a Covilhã vai ser o luxo do século XXI no nosso país”
A obra decorreu numa altura incerta para o turismo. “Neste estado de pandemia mantivemos a força anímica para fazer mais e melhor”, assegura Rui Barata. “Assumimos esta pressão firme durante todo o período da pandemia, com os custos associados, pois sabíamos qual era o nosso caminho”, prossegue o engenheiro, frisando que o tempo de maior paragem foi aproveitado para “dar formação aos nossos colaboradores”.
O projeto envolveu a requalificação integral de um palacete no centro da cidade, com uma nascente na parte traseira onde no século XIX se davam ‘penas de água’ às famílias nobres. Foto D.R. Ricardo Oliveira Alves
O hotel Pena d’ Água abriu com um total de 27 unidades: 19 quartos na casa-mãe, além de mais oito ‘villas’. Conta também com uma zona de spa, uma piscina interior e outra no exterior.
“Até junho não conseguimos uma taxa de ocupação regular, o que foi penalizador”, refere o proprietário, adiantando que em agosto “as taxas de ocupação foram excecionais”. “Muitas pessoas procuram agora unidades pequenas e acredito que a Covilhã vai ser o luxo do século XXI no nosso país”, sustenta Rui Barata.
O hotel conta com um spa e piscinas, no interior e no exterior. Foto D.R. Ricardo Oliveira Alves
Ter um resort com ‘villas’ e piscina no centro histórico da Covilhã “é único e não existe em muitas outras cidades”, enfatiza. “O que temos aqui na Covilhã é uma pérola no meio da cidade.”
Outra motivação adicional para o engenheiro da Covilhã foi o facto de a filha de 30 anos, Carlota Barata, ter querido assumir a direção do Pena d’ Água após estudar gestão de empresas. “Ela esteve fora do país e tinha muita vontade de voltar à Covilhã.”
A pulsão de Rui Barata em avançar com um projeto de turismo começou com a reabilitação da casa do seu avô, que é hoje a Casa com História. “Tive uma vida sempre ligada à gestão empresarial e à construção e a dada altura ficámos com um ativo de família pelo qual tínhamos um carinho especial, que era a casa do meu avô, onde quisemos fazer uma requalificação bem pensada.”.
Foi logo a seguir que Rui Barata decidiu comprar o terreno no centro da Covilhã onde abriu o hotel Pena d’ Água, que este ano ganhou um prémio da Magazine Imobiliária nas categorias de turismo e de reabilitação.
O hotel ganhou este ano um prémio de turismo e reabilitação. Foto D.R. Ricardo Oliveira Alves
“Trouxemos ainda uma menção honrosa de turismo para a Covilhã, são reconhecimentos que me enchem de orgulho”, reconhece o engenheiro, que em outubro vai adicionar ao Pena d’ Água um edifício contíguo onde vai abrir um restaurante. “Toda a confeção do restaurante vai ser a ‘bíblia’ da comida tradicional portuguesa, com produtos o mais possível da região”, promete.
A PROFESSORA QUE MUDOU DE VIDA POR UM HOTEL DEDICADO “A VER ESTRELAS”
A pandemia trouxe um abalo sério na vida de Carolina Pires, ex-professora de Físico-Química que se tinha lançado num pequeno projeto de turismo na aldeia do Peso, com três suites, a que chamou Lugar nas Estrelas, apostando na Rota de Céu Aberto. “Levar com a pandemia foi muito complicado, era eu a fazer tudo. Estarmos fechados, sem faturação nem rendimento familiar, não foi mesmo nada fácil.”
Carolina Pires deixou de ser professora para se dedicar ao seu turismo na aldeia do Peso, a que chamou Lugar nas Estrelas. Foto D.R.
Carolina Pires, que é da Covilhã, tinha deixado o trabalho nas Caldas da Rainha como para se dedicar ao projeto turístico na aldeia serrana. “Tínhamos um terreno de família abandonado, de que todos os nossos amigos gostavam e ao qual diziam que devíamos fazer alguma coisa”, conta. “Percebemos que tínhamos de fazer uma mudança de vida e deixei o ensino para me dedicar a 100% ao alojamento. Percebemos que a Serra da Estrela era o melhor sítio para ter um turismo, começámos com uma estrutura pequenina, não sabíamos era que vinha aí uma pandemia.”
“As pessoas nesta fase procuram ter mais contacto com a natureza do que com outros seres humanos. E observar o céu é uma experiência muito íntima”
A agravar a situação, e além de ter ficado sem “o ordenado habitual como professora”, também o seu marido, Rui Almeida, ficou desempregado na sequência dos tempos de covid – o que levou o casal a criar uma empresa de gestão de alojamentos através do Centro de Emprego, designada Donno.
“O meu estado de espírito só era pensar que devia voltar a ser professora e que tinha tomado uma opção errada”, conta Carolina Pires. Mas a opção acabou por se revelar certa: após o turismo na aldeia do Peso ter ficado fechado, enfrentando períodos em que “estávamos quase vazios e sem reservas”, voltou a ter procura e de forma ainda mais intensa.
“Mesmo com a pandemia conseguimos ultrapassar a faturação de anos anteriores com crescimentos de 20%”, adianta Carolina Pires. “Sempre tivemos muitos hóspedes portugueses, no ano passado tivemos zero estrangeiros, mas este ano já tivemos belgas, holandeses ou franceses. Nas próximas reservas, de dezembro a janeiro, já temos brasileiros que nunca viram neve e querem vir à Serra da Estrela.”
A pandemia trouxe ao Lugar nas Estrelas aumentos de 20% nas taxas de ocupação. Foto D.R. Catarina Paramos
“O Lugar nas Estrelas surgiu no terreno familiar com muita ligação à minha área de físico-química: a observação de estrelas. Todos os amigos que lá iam gostavam de apreciar o céu noturno e da perceção das estrelas que não existe na cidade.”
Durante a covid deixaram de ser feitas observações com grupos, “mas avisávamos que íamos desligar as luzes e as pessoas gostavam dessa experiência de ficar a apreciar a natureza e as estrelas, é uma coisa muito pessoal”.
Carolina Pires diz estar a “retomar com calma” experiências que envolvem juntar pessoas e partilhar material, onde se inclui o ‘cinema à luz das estrelas’ ou o ‘jantar à luz das estrelas’ com todos os hóspedes no jardim.
O retomar de atividades também inclui a ia uma vez por semana de um professor da Universidade da Beira Interior para prestar explicações científicas.
Nesta fase de retoma está em vista um projeto de ampliação e a compra de telescópios no pequeno turismo da Serra da Estrela. Foto D.R. Catarina Paramos
“Estamos na fase de preparar a retoma, a recomeçar devagarinho, não sei se as pessoas estão à vontade para voltar a experiências em grupo”, diz. “Temos telescópios para comprar e vontade de fazer um projeto para ampliação”, avança a ex-professora, lembrando que ela e o marido tiveram de “vender uma casa e investimos esse dinheiro na parte do alojamento da quinta”.
Para trás fica um período complicado vivido com a chegada da covid, “com conflitos familiares em que se começa a questionar porque é que se deixou um trabalho estável porque os sonhos às vezes são um risco”, nota Carolina Pires. “Mas já vejo futuro e vamos continuar a sonhar no Lugar das Estrelas.”
Notícia exclusiva do parceiro do jornal Postal do Algarve: Expresso