Pode dizer-se de um livro que é claustrofóbico?
O livro História da Violência, publicado pela Elsinore, é uma narrativa de pendor autobiográfico em que Édouard Louis narra a violência de que foi vítima. Mas conforme a narrativa se reparte em múltiplas vozes – com a irmã de Édouard a contar ao marido a sua versão da história pontuada pelos seus apontamentos sobre o que pensa e sente em relação ao irmão, os polícias que tomam nota da queixa com o seu indisfarçado preconceito, os próprios apartes de Édouard que surgem aqui e ali entre parênteses, como se não fosse ele o narrador e autor, mas sim alguém que ao coligir uma série de fragmentos que compõem a versão oficial dos factos não consegue impedir a deixar os seus comentários – percebemos que este relato não é uma confissão mas quase uma carta de amor.
Édouard foi, lamentavelmente, uma vítima. Um jovem homossexual que foi abordado na rua por Reda, um estrangeiro sedutor que o ilude. Esta é a sua história de como uma noite de um amor fugaz entre dois homens estranhos se transforma num pesadelo, de uma noite de amor consentido, pelo menos no início, cujo acto se repete por várias vezes, se converte numa violação e numa violentação que deixa marcas. Mas, e é aí que o livro oprime, Édouard também se apaixona pelo seu agressor, nessa noite em que fizeram amor – é mesmo assim que o acto sexual é designado. Lê-se na contracapa do livro: «A história de Édouard é difícil, íntima e dolorosa; tanto que, sem espaço para devaneios da imaginação, lhe resta apenas o relato agitado, por vezes, implacável, daquilo que a realidade um dia lhe trouxe». Mas na verdade Édouard ilude-se. Ao ponto de inventar pedaços da história do homem que o violentou. De criar histórias que insere na infância do homem que lhe deu atenção naquele dia e que o fez sentir-se especial.
Édouard narra de forma honesta e crua, como uma confissão pessoal
A narrativa de Édouard é feita de forma honesta e crua, como uma confissão pessoal.
«Nessa noite, não percebia como é que a minha história podia já não me dizer respeito (isto é, que eu estava excluído da minha própria história e que, simultaneamente, estava incluído nela à força, uma vez que me obrigavam a falar ininterruptamente dela, isto é, que a inclusão era a condição da exclusão, que ambas eram uma coisa só (…), a história da qual já não tinha o direito de sair).» (p. 41)
Mas da mesma forma que a história de Édouard rapidamente lhe escapa, o relato do que lhe sucedeu converte-se num retrato da actualidade, em que explora o ódio racial e o mal-estar da França e da Europa de hoje. Porque Reda é cabila (argelino)…
«Mataram-no, foi uma agressão, um árabe estrangulou-o, foi estrangulado por um filho da puta de um árabe» (sempre a mesma tendência para chamar árabe a tudo o que se situa para lá da Espanha, incluindo os portugueses, os gregos e até os espanhóis)» (p. 134)
Releve-se a passagem em que o autor-narrador afirma a sua necessidade de uma clivagem social, de se demarcar da família (o que lembra Regresso a Reims, de Didier Eribon).
«Reda quis saber porque é que, com pouco mais de vinte anos, tinha deixado a família e sobretudo porque é que não passava o Natal com ela. (…) Respondi-lhe que para mim os estudos tinham sido para mim mais uma consequência da minha fuga. Que primeiro tinha fugido. Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente do meu passado. Podia tornar-me operário, como o meu irmão, numa fábrica a trezentos quilómetros de casa dos meus pais e nunca mais os ver; essa fuga seria parcial. A presença dos meus tios, dos meus irmãos ficaria em mim: o mesmo vocabulário, as mesmas expressões, os mesmos hábitos alimentares e de vestuário, os mesmos interesses e mais ou menos o mesmo modo de vida.» (p. 71)
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, França, em 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris. Venceu o Prémio Goncourt para Primeiro Romance com a publicação do seu livro de estreia, Acabar com Eddy Bellegueule (Fumo Editora, 2014 – actualmente esgotado), onde se unem o pendor autobiográfico confessional e a força do romance moderno.
Uma nota acerca da tradução ou revisão do livro: não deixa de ser estranho que a obra de estreia do autor seja mencionada neste romance (aparentemente escrita um mês antes), referindo-se o título original (pág. 82) sem qualquer alusão ao facto de haver edição do mesmo em Portugal.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de março)