A relação de António Costa com os parceiros que lhe aguentaram a primeira legislatura e com os quais estará condenado a contar para lhe aguentarem a segunda tem tido várias fases – casamento, separação, união de facto, amuos, deceções e calculismos – mas o primeiro-ministro regressou às lides pós-autárquicas disposto a dar uma nova oportunidade ao caso.
Primeiro esforço: adoçar o tom. António Costa foi duma suavidade inaudita, quer com o PCP (menos surpreendente), quer com o BE (menos usual) , e as frases que deixou para memória futura cheiraram a pré-acordo nupcial, quanto mais não seja para salvar o próximo Orçamento de Estado mas, aparentemente, com a pretensão de ir além disso. Entenda-se: contar com a esquerda para salvar a legislatura.“Vamos com certeza continuar a trabalhar juntos”, respondeu o primeiro-ministro a Catarina Martins, após a líder do Bloco denunciar o estado de exaustão do Serviço Nacional de Saúde ou o milhão de portugueses que continuam sem médico de família quando Costa tinha prometido dar um médico a todos.
“Como sabe, temos vindo a tratar desse assunto no âmbito do Orçamento de Estado”, ía respondendo o primeiro-ministro, sempre suave e colaborante. Mas o trunfo na manga seria Marta Temido, a ministra de Saúde com pergaminhos de esquerda, que havia de se dirigir ao comunista João Oliveira como quem fala com um colega de Governo: “A resposta do SNS à pandemia decorre do investimento que fizemos em conjunto”. A geringonça já teve melhores e piores dias, mas o Governo foi ao Parlamento disposto a fazer votos para a reanimar.
Bloquistas e comunistas cumpriram o seu papel. Não garantiram nada, pelo contrário insistiram nas causas que os levam a pressionar o Governo – mais pessoal para o SNS (PCP e BE), o fim do fator de sustentabilidade das pensões (BE), legislação laboral e controlo do valor das rendas (PCP), aumento dos salários médios e descongelamento de carreiras na Função Pública (BE e PCP), aumento dos dias de compensação cada ano de trabalho em caso de despedimento (PCP), um rol de reivindicações sociais.
Costa exercitou a arte de não dizer que não sem dizer que sim. Aumentos salariais? “Temos pressionado bastante os parceiros sociais, mas a questão essencial é manter o emprego”. A “agenda para o trabalho digno” foi citada ‘n’ vezes como prova de que o Governo está alinhado com as preocupações da esquerda à sua esquerda. Tão alinhado que durante a pandemia “conseguiu evitar uma calamidade no desemprego”. Foi o pretexto para atirar sobre a direita e revisitar o papão do consulado de Pedro Passos Coelho.
“HÁ DUAS VISÕES”. ESQUERDA, VOLVER
“Há duas visões políticas diametralmente opostas para enfrentar uma crise”, teorizou o primeiro-ministro, sem diferenciar a natureza do que Portugal viveu com a troika e do que viveu com a pandemia. O objetivo era colar o PS à esquerda que aposta na “solidariedade”, contra a direita que escolhe a “austeridade”. E porque tudo serve para vender o PRR – Plano de Recuperação e Resiliência, vulgo ‘bazuca’ – Costa rematou que “a sorte dos autarcas do PSD é este Governo não ser do PSD”. Como quem diz: se Rui Rio fosse primeiro-ministro, faltaria dinheiro às câmaras em nome das austeridade.
Rui Rio foi certeiro nos dois temas que escolheu para confronto: como é possível que o Governo continue a aguardar em silêncio o parecer que pediu à Autoridade Tributária sobre a “fuga” da EDP a pagar 130 milhões em imposto de selo; e que plano B tem o Governo para a TAP caso a Europa vete as ajudas às empresa onde já entraram 4,5 mil milhões, “numa dupla falta de respeito pelos impostos dos contribuintes”.
Desta vez, o primeiro-ministro ía treinado para não se irritar e cumpriu, embora sem deixar cair uma das suas armas prediletas, chamada ironia: “Não sei dizer, não tenho informação sobre o trabalho da AT, mas uma coisa é certa, a Autoridade Tributária não perde a oportunidade de cobrar um cêntimo que seja”. Dos 130 milhões da EDP, nada.
Quanto à TAP, defendeu a dama de Pedro Nuno Santos com unhas e dentes e disse estar “convicto de que até ao fim do ano a Comissão Europeia aprova o plano de apoio” à companhia. Plano B diz que não há. “Há Plano A, não há Plano B”, afirmou. Rio contra atacou com o deficiente crescimento do país e a falta de investimento para a qual disse só haver duas saídas: “ou mais endividamento externo ou pela via do consumo”.
“Vai proteger a poupança”, perguntou Rio a Costa. Mas Costa gosta de falar de milhões: “Vamos recuperar e voltar a convergir com a UE”, o PRR prevê “11 mil milhões para as empresas e 6 mil milhões a fundo perdido para a modernização empresarial”. O PRR não sai da boca do primeiro-ministro, que avisou não se tratar “duma ficção” mas duma realidade já em grande parte contratualizada.
O PRR E A MATERNIDADE
Muito atacado pela forma como entrou na campanha autárquica de PRR na mão para ajudar os autarcas socialistas, António Costa perdeu a estribeira com que tinha ido para este debate quando Coelho Lima, do PSD, lhe perguntou se não considera que o “bodo aos eleitores” que protagonizou no ‘road show’ da campanha, além de ter “corrido mal” o “desqualifica” como primeiro-ministro.
“O senhor não me conhece de parte nenhuma, não o autorizo a fazer juízos morais sobre mim”, respondeu Costa, num momento de derrapagem do guião moderado com que foi para este debate. Rui Rio não tardaria a abandonar a sala, onde o primeiro-ministro foi exibindo gráficos para provar que o líder do PSD se enganou nas previsões que fez sobre o impacto da pandemia.
“As previsões de Rui Rio assentaram no que ele teria feito se fosse primeiro-ministro”, afirmou. E isso quer dizer “austeridade”, segundo Costa, que esteve sempre a falar para esquerda. Mesmo quando anunciou que a maternidade em Coimbra, que prometeu e lhe valei duras críticas na campanha eleitoral, já tem local e orçamento garantidos. Costa diz que só não os anuncia por “respeito” pelo novo presidente da câmara. A bola está passada ao autarca.
Jerónimo de Sousa não facilitou a conversa que ainda tem pela frente horas de negociação para viabilizar o Orçamento – “não se pode adiar mais os aumentos salariais …” – e disse mesmo sair dali “preocupado”. Mas António Costa transmitiu-lhe confiança: “Estou certo de que na segunda-feira ficará menos preocupado”. E mostrou-se ele próprio muito confiante: “Tenho a certeza que o PCP não faltará ao compromisso que tem na resposta a dar ao país”.
Sempre áspero com a direita, Costa tratou Cotrim Figueiredo do IL como alguém que “diz que não percebeu nada do que pode esperar do OE mas já decidiu que vai votar contra. É liberal!”. Mas foi surpreendentemente cordato com o Chega, ao ponto de aceitar analisar uma proposta anunciada por Diogo Amorim para ajudar a blindar fugas do país como a do banqueiro João Rendeiro. “Não deixaremos de melhorar o quadro legal só por uma iniciativa ser do Chega”, afirmou o primeiro-ministro. Mais ou menos o que o PSD costuma dizer.
O PAN também foi tratado com simpatia – “ao contrário do CDS, que gosta de subsidiar os combustíveis fósseis, nós e o PAN partimos do mesmo ponto de vista e defendemos que é preciso taxá-los”, afirmou o PM, que vê no partido de Inês Sousa Real um voto sempre importante para os OE.
Cecília Meireles, do CDS, anteviu “uma grande viragem à direita” como consequência das autárquicas e espicaçou o chefe do Governo com os atrasos de Portugal face à Europa em matéria de recuperação económica, mas António Costa escolheu felicitá-la para atacar o PSD: “Parabéns. O CDS foi o único partido que não perdeu nenhuma câmara e ainda ajudou o PSD a vencer algumas”.
O PSD é o inimigo a abater. Dividir a direita talvez ajude. O Chega já não é o Diabo. A esquerda é o Céu possível. E a perspetiva de gerir o PRR e puxar pelo país foi classificada por António Costa como “um tempo empolgante”. Dará para uma recandidatura?
Notícia exclusiva do parceiro do jornal Postal do Algarve: Expresso