Fotografando o Algarve há mais de duas décadas, em seus aspectos mais singulares, com especial atenção aos testemunhos ainda tangíveis de uma arquitectura aqui produzida e desenvolvida na primeira metade do passado século, encontro-me hoje na posse de milhares de imagens que dão corpo a um discurso antagónico a um outro, sendo este último simplório e redutor, acerca da Arquitectura Popular na Região do Algarve, cuja existência domina ainda sobre a maioria da população.
De facto, se por um lado o discurso dá os primeiros passos de mudança ao nível da produção de conhecimento dentro das Universidades, revelando uma complexa e variada ocupação e vivência do espaço; por outro assiste-se, a um mesmo compasso, ao confinamento do mesmo a essas mesmas instituições não contagiando a população e desta forma perpetuando não só uma ideia errada acerca da Região, mas igualmente condenando os testemunhos ainda existentes a uma efemeridade que não se coaduna com um possível estatuto que poderiam vir a lograr, se fossem reconhecidos enquanto Património.
Somos educados no sentido do Património erudito e religioso, altaneiro e majestoso, formatados por doutrinas de criação de uma unidade de imagem de uma Arquitetura Algarvia alva e utilitária – uma determinada arquitectura popular do Algarve, cuja existência se caracterizava por elementos ligados somente à estética do prazer visual, encontra-se remetida para as sombrias dobras da História, onde nunca se deverá entrar pois quem o fizer cairá no campo do exótico, do pastiche, da bizarria.
Penso que não erro ao escrever que já todos teremos experimentado sensações transmitidas pelas ruas por onde caminhamos, e se algumas poderão transmitir a frieza dos alumínios, repelindo; outras transmitirão a maciez da madeira, envolvendo-nos. Nas urbes, sendo as ruas um espaço público confinado pelas fachadas das habitações, ao percorrê-las, já todos pensámos na falta de urbanismo ligado a uma recente construção ou, pelo contrário, julgámos estar perante um tesouro: um testemunho de um Tempo Outro.
“Já elaborei exposições por todo o território”
A partir de certo momento que não saberei precisar no tempo, vi-me com um corpo de trabalho já imenso, e capaz – quer pelo seu número quer pela diversificante riqueza por si representada – de ser exequível a ideia de edificação de uma exposição em cujas linhas estivessem contidos os múltiplos elementos que imprimem à arquitectura algarvia um cunho singular e diferenciador.
A primeira oportunidade surgiu na forma de um convite feito pelo saudoso António Rosa Mendes, para elaborar uma exposição de raiz na biblioteca da Universidade do Algarve. Concebi a criação de um conjunto expositivo a partir das existentes mesas-vitrine (cerca de 20) em cujo interior dispus cerca de 600 imagens impressas, sendo que todas elas se encontravam veladas sob uma camada de areia da praia, obrigando o espectador a afastar a areia dos olhos, no que se assemelhava a um arqueológico exercício, para se poder ter acesso a uma outra realidade.
A partir desse momento até aos dias de hoje, elaborei exposições por todo o território, tendo sempre presente a tentativa de mostrar a existência de uma riqueza arquitetónica presente nas formas, cores, influências, materiais e soluções.
Assim, pensando nas razões que me levam a edificar um conjunto expositivo e a colocá-lo perante o olhar do outro, será não somente o desejo de mostrar o trabalho por mim desenvolvido, fruto de paixão, mas igualmente de uma tentativa de contaminação do próximo para que igualmente inscreva em si a importância da existência de tais elementos.
Ao subtrair à realidade, muitas das vezes do dia-a-dia, um conjunto ou um pequeno elemento, trazê-lo de um dissolvente firmamento para a altura dos olhos ou à distância tangível do toque confere a tal elemento na imagem representado uma outra visibilidade, uma outra existência, tornando-se possível não somente a criação de uma políedra imagem acerca da Arquitectura Popular Algarvia como a sua sedimentação enquanto existência sob ameaça.
Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Livro dos Conselhos d’El-Rei D. Duarte
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)
(CM)