O Algarve é o ocidente andaluz por excelência e tem sido considerado por muitos o paraíso na terra pois “os lugares brilham entre as árvores, quais pérolas engastadas em esmeraldas”.
[Aqui] a vegetação, a brisa, o sol, os frutos, as águas, tudo é bom. As pessoas talentosas do Islão nascem no Andaluz, onde se elevam o sol e a lua da ciência, “terra de génios.”, diz-nos Pinharanda Gomes no seu livro A Filosofia Arábico-Portuguesa. O historiador marroquino do sec. XIII Al-Marrakushi no seu livro Historie des Almohades afirma: “Nenhum clima goza de temperatura mais igual, de um ar mais puro, de melhores águas, de plantas mais olorosas, de rocios mais abundantes, de manhãs mais gratas, de noites mais doces.”
Por este motivo, “O encontro com a feraz Andaluzia, foi decisivo na quebra da expansão árabe a ocidente… Aos felizes detentores das veigas meridionais, como poderiam tentar as asperezas do setentrião”, pergunta-se F. da Cunha Leão em O Enigma Português. Para quê continuar a guerra expansionista se se estava já na terra prometida? O Algarve correspondia na perfeição a esse oásis “onde deixará de haver chamamento à oração, porque todas as coisas estarão consumadas, no paraíso da glória e da felicidade”.
Esta terra abençoada foi também fecunda de filosofia, a saber, da vertente mística do Islão: a filosofia Sufi. Nela se distinguem três vias principais: a via do amor, a via do êxtase, e a via da intuição.
No misticismo do amor o homem deixa-se impregnar pelo amor de Deus. O expoente máximo da poesia amorosa sufi é o poeta Jalal ad-Din Rumi e podemos encontrar a sua influência nos místicos espanhóis Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz.
A segunda é a via extática que implica experiências de diferentes estados de consciência. A sua principal metáfora consiste na viagem noturna do profeta Maomé pelos sete céus até à presença divina. Os sufistas extáticos atingem um grau tão elevado de concentração que perdem a consciência do mundo em seu redor. Consideram que entram num estado de “graça infundida”.
A terceira via é a do discernimento intuitivo. Através de um órgão a que chamam “olho do coração” acedem a realidades intangíveis. Consideram que o mundo é Deus velado e utilizam uma linguagem simbólica para falar desse inefável que apenas o olho do coração alcança.
São aproximadamente trinta os poetas árabes que nasceram e viveram no Gharb Al-Andalus, entre eles o mais famoso poeta de Cacela (Velha) Ibn Darraj Al-Qastalli; Ibn Qasi de Silves que, por sua vez, deixou dois discípulos: Al-Oriani de Loulé, que se fixou em Sevilha, e Abu Imran de Mértola. Ambos foram mestres do grande filósofo-poeta sufi Ibn al-Arabi de Múrcia, quando este viveu em Sevilha.
Justamente, a ACTA acaba de estrear a peça “IBN QASI”, da autoria de José Carlos Fernández, com encenação de Luís Vicente, que estará em cena no Teatro Lethes até 30 de Novembro. Uma oportunidade a não perder para conhecer um pouco mais da vida e obra deste soberano “iniciado”.
Consta que durante a juventude Ibn Qasi, oriundo de uma família com posses, terá sido um hedonista, levando uma vida de prazeres mundanos. Detentor de um cargo público, abandonou-o após a morte dos seus pais emergindo então a sua vocação espiritual. Ao tornar-se sufi, decantou-se por uma vida ascética, e doou grande parte dos seus bens aos mais carenciados. Teve dois principais mestres espirituais: Ibn Khalil de Niebla e Khalafu ‘llah al Andalusi. Tornou-se um fervoroso defensor da obra proibida de al-Gazali, proscrita desde o sec. XII, que exortava as gentes contra o regime almorávida.
Começou por pregar a vizinhos e rapidamente a sua fama foi crescendo, congregando seguidores. Afirmava ter feito a peregrinação a Meca numa só noite, ter dons telepáticos e que o dinheiro que distribuía provinha do “tesouro de deus”.
O investigador António Rei no seu artigo “Os Místicos no Garb al-Andalus e os modelos sociológico das suas vivências (séculos X a XIII)” considera que Ibn Qasi foi um caso sui generis entre os místicos de al-Andalus pois “tendo sido um chefe ou guia espiritual (Imām), acabou mais tarde, por assumir um protagonismo como chefe político (Mahdī). O papel do Mahdī não é o de um chefe político tout court, como um qualquer monarca. Ele é um homem ‘guiado por Deus’, para fazer com que a lei islâmica e a justiça social se restabeleçam na sociedade, após um período de injustiça e de ignorância. (…)
Ibn Qasi foi o único mestre espiritual, oriundo do espaço hoje português, que deixou uma obra escrita que sobreviveu, completa, até aos nossos dias. Trata-se do Tratado Khal‘ al-Na‘layn (Tira ambas as sandálias), que se encontra em Istambul, associado a um comentário realizado por Ibn al-‘Arabī. Esta mesma obra chegou às mãos de Ibn al-‘Arabī através de uma dádiva feita pelo próprio filho de Ibn Qasī, al-Husayn, na Tunísia.” Aqui apresentamos um dos seus poemas:
“Tira as sandálias e ascende altivo
acima das estrelas cintilantes !
une-te à Verdade!
quem as desprezou
ficou chorando por todas as coisas.
o olhar do mais firme
-tal como o céu-
convoca a beatitude da verdade clara.
descalça as sandálias sinceramente,
desde os umbrais do esplendor.
une-te ao Ser!
vale-te mais essa união
vale-te mais essa união
que todas as provas da Razão.
quem viu o que eu gritei à multidão
acerca da realidade da união
tem de deixar o mundo da dualidade
que são duas sombras sob o sol.
o espírito venceu a dor ao aproximar-se do distante.
ó mãe dos meus irmãos!
o Amado é a meu lado!
ó povo! se a paixão me der a morte
toma o meu amor, como vingança,
e vinga-me!”
Ibn Qasi constrói na Arrifana de Aljezur um ribat ou azóia onde congrega os seus seguidores de oração e luta ― os muridines de quem se proclama Im. Foi ele o primeiro a sublevar-se no al-Andaluz contra os Almorávidas. Conquista Mértola em 1144 onde chega a cunhar moeda, sendo o único príncipe mouro a fazê-lo em território lusitano. De facto, foram encontradas em Múrcia moedas dessa época onde consta “O Mahdi [Ibn Qasi] é o nosso Imām”. Mais tarde Ibn Qasi é proclamado senhor de Silves.
Quando uma década depois o seu reinado entra em declínio pede auxílio a D. Afonso Henriques, senhor de Coimbra. Esta aliança é selada com a oferta de um cavalo, um escudo e uma lança. Presentes modestos se desconhecermos o seu significado simbólico. Porém, se tivermos em conta a iniciação cavalheiresca do ocidente medieval o cavalo é a montada privilegiada da busca espiritual, o escudo representa o universo, assim convertendo o cosmos em arma protetora, e cravar uma lança em terra significa o fim das hostilidades e o desejo de parlamentar.
Pode parecer estranha esta aliança entre um rei cristão e um soberano muçulmano contudo, como afirma Adalberto Alves em As Sandálias do Mestre, “para um sufi, as fronteiras entre as diversas formas de conhecimento espiritual são ilusórias e resultam da vivência meramente esotérica do fenómeno religioso. Sabemos quanto os Templários foram esteio ao rei conquistador, e sabemos igualmente o grau de cumplicidade iniciática que, com o sufismo, a Ordem possuía. (…) Não tinha, pois, Ibn Qasi, razões para considerar aberrante um pacto com o nosso rei, muito pelo contrario, era isso natural à luz das regras da Cavalaria Espiritual.”
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de novembro)