A filosofia começa com o espanto. Assim reza o livro alfa da Metafísica de Aristóteles. A filosofia começa, portanto, com a capacidade de se surpreender, de se maravilhar. Viajar cria condições favoráveis para que tal aconteça. Abandonamos hábitos e rotinas, saímos desse quotidiano que conhecemos demasiado bem.
Ao viajar, retiramos o manto de indiferença que cobre o mundo impedindo-nos de o apreciar. Como diz Charles Feitosa “Filosofar é migrar voluntariamente, exilar-se da própria casa, da cidade, de si mesmo (…) passamos a perceber de forma mais apurada as coisas e tornamo-nos revolucionários!”
Viajar de mota é como colocar especiarias na comida! Os cheiros, os recortes da paisagem, os sons, tudo se intensifica! Podemos deslizar devagar, ou correr velozes. Viajar de mota é ter o corpo sempre presente: manter o equilíbrio em duas rodas, inclinar-se nas curvas durante o tempo necessário para as superar sem cair, retesar braços e levantar-se nas lombas e, sobretudo, encontrar a forma de relaxar entre uma coisa e outra. Viajar de mota é sentir o erotismo da deslocação do ar, a adrenalina da velocidade que se expressa no roncar dos motores, e uma sensação de liberdade que nos invade a alma!
Era uma vez três amigos e duas motas, um pano do motoclube de Faro, muitos pins, e uma pendura inexperiente mas entusiasmada: Live to ride and ride to live! Veremos se te aguentas! No meu espírito relembro as palavras de Raul Proença: “Quem é assim disposto para a felicidade não tem que lamentar as estopadas dos caminhos.” (Guia de Portugal, 1927). E assim fizemos Faro-Chaves num dia para depois começar a saborear a descida pela lendária N2.
As estradas não ligam apenas lugares, ligam pessoas. Pela N2 há colegas de curso ao longo das povoações. São memórias colectivas de há muitos anos que agora se revivem em redor de uma bela posta de bacalhau ― tão alta como jamais vi! ― , bem regada com um tinto a condizer! O casal amigo que nos recebeu no km Zero em Chaves foi tão bom cicerone que quase se torna difícil iniciar a viagem. A Ponte Trajano ― ex libris da cidade ― resiste às intempéries do Tâmega há cerca de 1900 anos e seduz, quer de dia quer de noite.
Nas suas margens encontra-se o museu Nadir Afonso com arquitectura de Siza Vieira ― aqui o deleite é duplo quer na geometria virtuosa e colorida das telas de Nadir, quer nos amplos espaços que Siza concebeu para as albergar.
A gastronomia do lugar é saborosa e farta, não podendo dispensar-se o famoso pastel de Chaves. Depois de tanto prazer dado ao palato, recomenda-se beber a água que brota a 73 graus e tem a tradição milenar de cura de afecções músculo-esqueléticas, do aparelho digestivo e respiratórias, e também se diz benéfica para a prevenção de mazelas modernas como o stress e a ansiedade. Os seus vapores na noite fazem pensar que em tempos idos também aqui existiriam pitonisas. Nas redondezas é impossível não experimentar mais nascentes que brotam por toda a parte: Campilhos; Pedras Salgadas, Vidago… Mesmo junto ao marco do kilómetro zero encontramos em estética motard um bar/restaurante homónimo e a loja de recordações Templo N2, que abriu em Julho deste ano e é já um enorme sucesso!
Descemos por Vila Real e na Régua a respiração suspende-se com a beleza da paisagem! Fica a vontade de um passeio de barco pelo Douro e as visitas às vinhas da região. Junto ao rio, pedimos uma limonada fresca com hortelã para retemperar as forças e seguimos caminho. A cada curva a paisagem deslumbra!
Mais abaixo a estrada divide duas pequenas povoações: Matança, para a direita, e Forca para a esquerda. Caso para dizer: venha o diabo e escolha!
Em Lamego pelas festas de Agosto colocaram um palco gigante mesmo em frente da monumental escadaria de acesso ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios! Haverá remédio para tamanha insensibilidade?! Rodeamos e subimos. Lá em cima, longe do check sound, é possível ouvir o silêncio e estender o olhar. A igreja está aberta e, pelos claustros, ensaiam espontâneos elementos do coro. Seguimos o caminho abençoados… Boa a benção que nos enche os depósitos da paciência! É que desce o crepúsculo e em Viseu das rotundas perde-se a N2! Não há como! Nem perguntando a Viriato “destro na lança mais que no cajado” (Lusíadas, VIII)! Por muito fieis que queiramos ser, só seguindo um pouco pela IP3 se sai daquele rodopio!
É noite cerrada quando chegamos a Tondela onde a generosa hospitalidade de antigos colegas não cessa de surpreender. Grelha-se no jardim carne da melhor, tão abundante que recorda as hecatombes descritas na Odisseia, e fazem-se libações aos deuses da amizade, esta que cai em cascatas de gargalhadas na recordação dos episódios caricatos, ou nas graças novas que se geram ali mesmo, ao sabor do momento. É a festa! É a alegria! É a dança! É o deslizar do corpo e da mente para esses vestígios de ritual dionisíaco dos tempos modernos. E é já tão tarde que se tornou manhã cedo…
E quando de novo entardecemos não resistimos aos encantos da Fonte da Sereia que nos incita a conhecer a praia fluvial de Nandufe. Tão pequena mas tão bela! Dir-se-ia que podemos espreitar o habitat natural destas criaturas míticas.
Em Santa Comba Dão vem à mente a polémica sobre a criação do Museu Salazar e a petição em contra que circula pela opinião pública via internet. Períodos nebulosos da nossa história a coincidir com esta manhã de pouca visibilidade.
Desaguamos na lindíssima praia fluvial de Góis, com o seu areal branco no meio do rio e uma ampla esplanada por cima das águas. Enquanto degustamos uma bela alheira recordo que também Michel Vaillant ― o meu piloto herói de banda desenhada ― andou por aqui!
Prosseguimos rumo a Pedrógão Grande. Em contraste com o verde de mais acima, o coração aperta à vista das árvores queimadas, e à ausência da vegetação rasteira que ainda não recuperou! Pesarosos, recordamos o inferno que aqui se viveu em Julho de 2017. Apesar da proximidade com a grandiosa barragem de Cabril, o socorro não chegou a tempo!
Com 66 mortos e 254 feridos foi o maior incêndio florestal de sempre em Portugal e o mais mortífero da história do nosso amado país. Amado?! Sim, porque é impossível não se amar Portugal ao percorrer a N2. E aqui, em Pedrógão Grande, este amor dói.
A próxima paragem será doce, palha de Abrantes. Do castelo-fortaleza alongamos o olhar a perder de vista. Daqui em diante a bacia hidrográfica do Tejo exibirá o seu esplendor, pela ribeira do Sôr, sobretudo nos kilómetros que ladeiam a enorme extensão de água do vale do Sorraia que beneficia das barragens de Montargil, Maranhão e Magos. Os nomes das povoações fazem-lhe menção: “Água de todos os dias”, ou Domingão”. Apetece parar a moto e viajar um pouco de canoa, ou estender-se muito quieto e observar as aves.
Prosseguimos e o Alentejo estende sobre nós o seu manto de noite estrelada. O cansaço já pesa. Encontramos um belo porto de abrigo em Torrão, onde O Tordo está bem preparado para nos receber.
O último dia reserva-nos as surpresas do Museu da escrita de Almodovar e, já prestes a terminar, a N2 faz as delícias dos motociclistas pelas curvas da Serra do Caldeirão.
E eis a chegada ao Km 738 em Faro ― a viagem terminou! Mas, afinal, é apenas o princípio do tanto que ficou por ver. Fica a promessa de regressar com mais tempo!
Inscrições para o Café Filosófico: [email protected]
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)
(CM)