O livro escrito por António Manuel Ribeiro, vocalista dos UHF, retrata a dolorosa história de que foi vítima. Foi o primeiro caso de perseguição obsessiva, ‘stalking’, julgado e condenado em Portugal.
Muitas foram as pessoas que assistiram à apresentação do mais recente livro escrito por António Manuel Ribeiro, vocalista dos UHF, e que teve como convidada especial na apresentação Ana Pinto, advogada algarvia e directora executiva do jornal POSTAL.
‘És meu, disse ela’ retrata a perseguição obsessiva de uma fã durante quase dez anos ao vocalista dos UHF. Uma história de horrores que António Manuel Ribeiro vivenciou e partilhou com o público presente nas FNAC’s da Guia e de Faro, no passado sábado. Do público, foi notório o número elevado de pessoas presentes que confessaram também terem sido vítimas do mesmo crime: ‘stalking’.
Durante a apresentação do livro, Ana Pinto revelou ter acompanhado “muitas das vivências que aqui são confidenciadas, pelo facto de eu própria, no âmbito de uma formação avançada em Ciências Forenses leccionada pelo INML, ter estudado o caso do António, como exemplo de stalking, o qual não só deu lugar à primeira jurisprudência em Portugal, como à tipificação legal do crime, que veio efectivamente a suceder dois anos mais tarde, através da Lei n.º 83/2015 de 5 de Agosto que veio fazer um aditamento ao Código Penal português, acrescentando o Artigo 154.º – A (perseguição)”, e cujo início de vigência é bastante recente: 4 de Setembro de 2015.
Segundo Ana Pinto, “o stalking tipifica uma das múltiplas facetas da violência interpessoal, já constituindo ofensa criminal em diversos países, para além de Portugal, como é o caso dos EUA, Austrália, Reino Unido, Alemanha e Holanda. No entanto, só a partir dos anos 80 é que a sociedade começou a despertar para o problema”.
“O assunto veio ganhando notoriedade no mundo académico mas também na sociedade em geral, através de filmes e séries, mas também através da divulgação de casos de perseguição obsessiva nos media”, esclareceu a jurista. “Trata-se de um padrão de assédio unilateral, por uma pessoa contra outra, sem que esta o deseje ou consinta, que nem sempre emerge de uma relação já existente de intimidade ou de proximidade, entre a vítima e o agressor/a, facto esse que o distingue do crime de violência doméstica”.
“O stalking, também designado por assédio persistente, começa por revestir a forma de uma série de comportamentos aparentemente inofensivos, através de atitudes que podem ir desde a oferta de presentes, a telefonemas frequentes ou envio de mensagens, e com o decurso do tempo, vai inequivocamente piorando, revelando a sua natureza intrusiva, obsessiva, persistente e continuada, levando a uma sequência de acções intimidatórias, que podem ir desde a perseguição até à chantagem e ameaça de morte”.
O cerco infernal vivido
Para António Manuel Ribeiro, “Este não é um livro que eu quis, mas é o livro de que precisei”, lê-se na página 11. “Podia ter sido o princípio da loucura e de resposta violenta, do chega para lá com dureza. Podia ter sido, mas comigo não foi”.
Cristina/82 foi a denominação com que esta mulher se apresentou. Começou a persegui-lo e a atormenta-lo, entre 2003 e 2012, num cerco infernal.
Segundo a contracapa do livro editado pela editora Guerra & Paz, ele foi atacado “com milhares de mensagens, chamadas, esperas, perseguições, delírios inimagináveis. Uma história tão mirabolante quanto verdadeira. (…) foi obrigado a travar uma luta hercúlea para voltar a ter vida”.
“Da loucura da perseguição à incompetência da justiça” o livro revela “os sentimentos de um homem desesperado, por não conseguir tomar em mãos as rédeas do seu destino, fustigado pela sombra sempre presente de uma perseguidora”.
Para o vocalista dos UHF, valeu-lhe a preciosa educação dos seus pais que o fez resistir e triunfar porque nunca desistiu. Hoje, diz-se um homem livre, “escapei a um caso que poderia ter acabado em violência grave e que, em muitos casos, acaba mesmo na morte”, como foi o caso conhecido do assassinato do ex-Beatles, John Lennon.
Ainda segundo Ana Pinto, “se há alguns anos atrás o crime de violência doméstica era praticado quase exclusivamente contra mulheres, actualmente quer a violência doméstica, quer o stalking são praticados em igual medida contra vítimas de ambos os sexos. A diferença é que as vítimas do sexo feminino denunciam, e as do sexo masculino sofrem, morrem em silêncio”.
Ana Pinto enalteceu ainda o autor do livro, “por ter quebrado o silêncio e ter passado para o papel este excelente testemunho, contado na primeira pessoa, que embora seja parte da sua história, coincide com a história de tantas e tantas vítimas, escondidas atrás do silêncio da vergonha, da censura da sociedade”.
“Estamos perante um caso que é referência de orgulho e objecto de estudo em diversas formações avançadas, e mais importante do que isso, motivando outras vítimas a fazerem justiça, e ajudando a fundamentar judicialmente, processos crime semelhantes”, disse ao POSTAL a jurista Ana Pinto.
Algarvio Bruno Correia deu o seu testemunho
Falar para ajudar outras pessoas foi a intenção de Bruno Joel Correia, um algarvio natural de Estômbar, quando decidiu dar o seu testemunho ao POSTAL.
Conheceu-a no local de trabalho mas a perseguição começou quando deixaram de trabalhar juntos, há nove anos, através de mensagens no MSN. “No início as conversas eram banais mas depois começou a enviar corações e a dizer que não conseguia deixar de pensar mim. Pedi que parasse porque não tinha interesse nenhum na pessoa mas parece que ela encarou isso como um desafio e a partir daí ainda foi pior. Dizia que não ia desistir e na mesma conversa mandava corações, e como eu não respondia dizia que os homens eram todos iguais mas mais à frente já pedia desculpas”.
Começou a ligar-lhe de vários números diferentes e a aparecer em todos os sítios que Bruno frequentava. “Na maior parte das vezes eu não a via mas depois recebia e-mails a dizer onde eu tinha estado em tal dia e às tantas horas. Parecia uma detective privada”. Uma situação que, não sendo tão longa e tão grave como a de António Ribeiro, afectou Bruno a nível psicológico e até mesmo físico. “Comecei a ter a tensão alta, ataques de ansiedade e deixei de sair de casa porque era em casa que me sentia seguro. No início desvalorizamos a situação e pensamos que vai acabar por parar mas quando percebemos que afinal não vai passar, começamos também nós a ficar psicóticos. Só quem passa por isto consegue perceber”.
Não chegou a fazer queixa às autoridades porque tudo parou há cerca de quatro anos, quando Bruno decidiu aceitar um pedido de amizade dela no Facebook, depois de já ter recusado vários. “Não sei se foi suficiente para ela conseguir ver as coisas que publico na minha página mas nunca mais tive qualquer tipo de contacto com ela. Hoje em dia tento não pensar nisso mas este livro reavivou a situação e fez-me perceber que não estamos sozinhos. Os passos daquele tipo de pessoas são os mesmos, dizem as mesmas coisas e agem da mesma forma. Não tenho medo de falar porque se ela por acaso se identificar neste testemunho e voltar ao mesmo, agora eu já sei como reagir e o que fazer. Naquela altura não sabia”.