O olhar crítico do chefe da Igreja em relação ao modelo económico e social saído da globalização e assuntos fraturantes como o celibato dos padres, a homossexualidade e a descriminação negativa das mulheres no seio da Igreja, são outros temas que pode acompanhar nesta entrevista em respostas escritas.
Entrevista: Ramiro Santos – Jornalista | Fotos: Ana Pinto
P – Como avalia a resposta da Igreja aos problemas sociais derivados da pandemia?
R – A Diocese do Algarve, pelo que me apercebo, está sensibilizada e atenta às carências sociais atuais e empenhada em lhes responder na medida das suas possibilidades.
Em agosto passado, com a Nota Pastoral “na linha da frente, vencer a indiferença”, procurei incentivar ainda mais esta sensibilidade e esta resposta. Passa também por aqui a realização da missão da Igreja e do testemunho cristão. Aliás, nela referia, explicitamente, que sem esquecer o núcleo essencial da missão da Igreja – proporcionar o encontro com a Pessoa de Cristo, verdadeiro coração do Evangelho e fonte de esperança e de alegria -, torna-se muito difícil anunciar o Evangelho a quem se vê privado de bens de primeira necessidade, consequência do desemprego crescente que vem produzindo efeitos nefastos em muitas famílias.
P – Há muita pobreza escondida no Algarve? Tem sinais de setores da classe média já atingidos pela pobreza?
R – Comprova-o o aumento dos que procuram apoio nas nossas comunidades paroquiais: Cáritas diocesana e paroquiais, refeitórios sociais, movimentos de cariz sócio caritativo…
P – Pode dizer-se que a sociedade algarvia tem tido uma resposta solidária e mais fraterna?
R – Partilhar com quem precisa é o timbre do povo algarvio e, aliás, do povo português em geral. Só não partilha, quem de todo não pode. Atestam-no as campanhas de recolha de alimentos, organizadas anualmente por diversas instituições.Felizmente não estamos sozinhos nesta resposta. Ela será tanto mais abrangente e eficaz quanto mais se integrarem todas as sinergias no apoio a quem precisa e, sobretudo, a quem mais precisa.Esta pandemia, à luz da fé que professamos e nos anima em Igreja, leva-nos a alargar o nosso apoio para além do âmbito da subsistência, ou seja, a unir à partilha de bens os gestos de escuta, de acolhimento, de consolação e, particularmente, de incutir confiança e esperançaem dias melhores pelo contágio do amor de Deus, manifestado em Cristo ressuscitado.
Quando um povo deixa que lhe roubem a alma, sujeita-se a novas formas de colonização cultural
P – Como avalia o desempenho do Papa Francisco do ponto de vista da sua mensagem e preocupação com os pobres, as minorias e os excluídos?
R – Não é fácil resumir em poucas palavras o muito que haveria a dizer sobre o estilo e o desempenho do Papa Francisco. Recordo o testemunho que escutei, alguns meses após o início do seu Pontificado: sinto-me uma ovelha, que tem andado muito tresmalhada, e que o Papa Francisco está a conduzir novamente à Igreja.É seguramente o Papa de palavras e de gestos, verdadeiros sinais de esperança para toda a humanidade. Os pobres, as minorias, os excluídos são os destinatários privilegiados destes sinais, que, por sua vez, pretendem abanar-nos e acordar-nos a todos, não apenas à Igreja, para esta realidade.
P – Na Encíclica Fratelli tutti, o Papa mostra-se bastante crítico com o modelo económico neoliberal dominante e a sociedade de consumo. Subscreve?
R – O Papa parte de uma visão evangélica da fraternidade (que tem a sua fonte na própria Trindade), para daí tirar consequências sociais, que implicam a conversão do coração àquela fraternidade que não tem o seu fundamento numa igualdade de direitos (liberdade, igualdade, fraternidade), mas que é dom de Deus dado aos homens, para os tornar capazes de amar, de se acolherem como irmãos e os mobilizar para construir um mundo mais justo para todos. É o Evangelho da caridade anunciado ao mundo globalizado deste século.Nesta visão do homem e do mundo, não cabe nenhum modelo económico, seja de que tendência for, que não tenha no centro, como princípio inspirador e dinamizador, a defesa e a promoção da dignidade da pessoa humana, o bem comum e a justiça social.
P – Acha que fenómenos como a globalização económica e os meios digitais na comunicação, ao invés de aproximar as pessoas do ponto de vista da solidariedade e da fraternidade, acentuou os egoísmos, criou novos guetos e impôs uma certa forma de colonização cultural, como diz o Papa?
R – Este constitui, em meu entender, um problema sério, não devidamente acautelado e menos ainda corajosamente enfrentado. Tem razão o Papa Francisco, ao defender que quando um povo, em nome de um suposto progresso ou por mania imitativa, negligência ou apatia, aliena a sua tradição e deixa que lhe roubem a alma, sujeita-se a novas formas de colonização cultural. Com a própria fisionomia espiritual, este povo sujeita-se a perder a sua consistência moral e, até mesmo, a independência ideológica, económica e política.
P – O Papa diz que estes problemas só se ultrapassam com amor fraterno, ou amizade social para além das fronteiras. Não acha que isto é uma nova forma de utopia que deixa tudo na mesma?
R – Faz-nos sempre bem evocar António Gedeão e confirmar que é “o sonho que comanda a vida”. Faz-nos falta gente que nos ajude a sonhar e a ver o que está para além do alcance do nosso olhar; que nos ajude a empenhar-nos, como refere o Papa, para que possa renascer entre todos um anseio mundial de fraternidade, de modo a tornar a nossa vida uma bela aventura. Faz-nos falta, sobretudo, sonhar juntos, como garantia para evitar miragens e transformar os sonhos em realidade.
Mesmo sem ordenação sacerdotal, a mulher tem lugar único na comunidade eclesial
P – Concorda que há uma descriminação negativa das mulheres na Igreja, tendo em conta o peso da sua participação religiosa?
R – Pessoalmente não tenho essa impressão. Sem entrar em fundamentos eclesiológicos, a Igreja não pode, sem mais, ser equiparada a um grupo cultural, social, político ou mesmo uma ONG, que se organiza a partir do “peso”, do “número” e da “participação” dos seus membros. A imagem da “família” tão sugestiva para definir a Igreja, não sendo a única, pode ajudar-nos na sua compreensão.
P – Está com o Papa que defende que as mulheres devem ter uma maior participação nas decisões da Igreja, passando a ocupar lugares e funções que até hoje lhes têm estado vedados?
R – Concordo plenamente com esta visão, tendo presente o mérito pessoal e não qualquer tipo de percentagens. Aliás, ele próprio dá exemplo a nível da Cúria romana. Algo se está a passar também entre nós, desde a Reitoria da Universidade Católica, à Cáritas Portuguesa e à Coordenação do Secretariado Nacional das Comunicações Socais.
Os leigos, em geral, tendo presente a doutrina conciliar, já participam na programação da ação da Igreja, não sendo apenas seus executores. É essa a função dos Conselhos pastorais, diocesanos e paroquias, que são constituídos maioritariamente por leigos.
P – Aceita que a mulher possa um dia aceder ao exercício sacerdotal?
R – A mulher, mesmo sem acesso à ordenação sacerdotal, tem um lugar único na comunidade eclesial – povo de Deus – enquanto imagem da Igreja que é mulher, esposa e mãe. E o seu ministério não ordenado, exercido aos mais diversos níveis, sempre generoso e dedicado, é determinante para construir e mostrar o rosto e o coração maternos da Igreja.
O celibato é para manter e quanto à ordenação de homens casados, o futuro a Deus pertence
P – Na sua opinião o celibato dos padres é para manter?
R – Na minha opinião, tendo presente a minha vivência pessoal e pastoral, é para manter.
P – Admite ou aceita que a Igreja possa ordenar homens casados?
R – O futuro a Deus pertence, como diz sabiamente o povo. Trata-se de uma questão de natureza disciplinar e não de ordem doutrinal. A Igreja já ordena homens casados, mas apenas como Diáconos permanentes. No Algarve, neste momento, são nove.
P – O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo será um dia aceite pela Igreja Católica ou o Papa Francisco já o aceitou?
R – A Igreja, em meu entender, não tem de aceitar ou condenar quem opta por casar civilmente seja homossexual ou heterossexual. O Papa Francisco não disse que aprovava o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. E o que ele disse não contradiz a doutrina da Igreja, a respeito do matrimónio. Revela sim a sua grande sensibilidade e o seu profundo humanismo.
P – Admitir a união civil de homossexuais é estar a violar a doutrina da Igreja?
R – A doutrina da Igreja, a respeito do matrimónio, não contempla a união civil seja entre quem for.
A nova encíclica do Papa Francisco pode ser a Rerum Novarum do nosso tempo
P – O Papa Francisco é: um revolucionário, um reformista, um humanista, ou um pouco de tudo?
R – O Papa Francisco constitui, em meu entender, pela sua origem, pelo seu percurso de fé e de serviço à Igreja, pelo seu estilo próprio, e particularmente pelos seus gestos, um grande dom de Deus à Igreja e ao mundo neste início do século XXI.
P – Considerando nomes como, Leão XIII, João XXIII, Paulo VI e João Paulo II, com quem se identificará mais o Papa Francisco?
R – Podemos sempre fazer comparações. As semelhanças e as diferenças são naturais: origem, temperamento, sensibilidade humana, espiritual e pastoral, percurso pessoal de serviço à Igreja. Há efetivamente uma linha de cariz social que une os nomes referidos, certamente como resposta aos apelos sociais do seu tempo.Mas, o que mais me apraz salientar é a riqueza da sua complementaridade como sucessores de Pedro, na Igreja de Roma, chamados a “presidir à caridade” em todas as outras Igrejas/Dioceses.O Papa Francisco tem características únicas. A mais evidente é a sua origem: vem da América latina, com tudo o que isso significa de pertença a um povo e a uma Igreja com características muito próprias.
P – A encíclica Fratelli tuttié a nova Rerum novarumdos nossos tempos?
R – Esta pode ser uma perspetiva de leitura, se bem que haja quase 130 anos a separá-las, tendo presente sobretudo a sociedade de cada tempo.A Rerum novarum, verdadeira carta-magna da ação social cristã, procura responder aos desafios provocados pela revolução industrial, presentes sobretudo no mundo do trabalho.Na Fratelli tutti o Papa propõe a todos o sonho de Francisco de Assis. Assumirmos e empenharmo-nos na construção do que, em teoria, já somos: uma única humanidade/família, constituídos pela mesma carne humana, filhos desta mesma terra que nos acolhe a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.Considero esta afirmação uma sugestiva mensagem natalícia do Papa Francisco, que partilho com os leitores do Postal do Algarve e com todos os algarvios: passarmos do eu solitário ao nós fraterno e solidário, inspirados n’Aquele que nos pede para fazer de cada dia, Dia de Natal.
RELACIONADO: