O POSTAL entrevistou Ulisses de Brito, presidente da Sub-Região de Faro da Ordem dos Médicos. O responsável falou sobre vários aspectos que têm de ser melhorados na área da saúde no Algarve. O médico apresentou ainda algumas sugestões para solucionar as questões mais gravosas. Uma entrevista totalmente focada na área da saúde, a não perder!
Considera que uma boa relação médico-doente é fundamental para a eficácia no tratamento das mais variadas doenças?
Obviamente que sim. A relação médico-doente é como o código postal, é meio caminho andado. Se você tem um médico em quem confia e com quem tem uma boa relação, claro que é mais fácil estabelecer uma ligação com essa pessoa e queixar-se daquilo que tem do que se tiver um médico com quem não se dá bem, com quem não se identifica ou com quem não está à vontade para poder falar dos seus problemas de saúde.
O doutor Ulisses é especialista em Pneumologia. Qual o segredo para a manutenção de um estilo de vida saudável?
O segredo é conhecido por toda a gente, no entanto existem algumas recomendações a ter em conta. Para ter um estilo de vida saudável é necessário ter uma alimentação variada, fazer exercício físico regular, não cometer grandes excessos em termos de álcool e não fumar. Essas são as regras que toda a gente já sabe.
A saúde no Algarve tem os mesmos problemas que no resto do país
Quais os principais obstáculos existentes na área da saúde no Algarve?Os obstáculos existentes são vários. É evidente que a saúde no Algarve tem, grosso modo, os mesmos problemas que no resto do país. De qualquer modo, são mais acentuados no Algarve porque nós estamos numa situação periférica em relação aos grandes centros. É preciso recordar que o Algarve está a 300 quilómetros de Lisboa, que é o grande centro mais próximo do Algarve e, portanto, isso acresce os nossos problemas.
Existe uma grande carência de médicos
Em primeiro lugar, existe uma grande carência de recursos humanos, carência de médicos. Esta situação acontece por várias razões. Por um lado, porque grande parte dos médicos fazem a sua formação nos grandes centros, como é o caso de Lisboa, Porto e Coimbra. Ao fazerem a formação nesses centros vão criando raízes nesses locais e quando acabam a especialidade, com perto de 30 anos, não têm vontade de se deslocar para zonas periféricas, nomeadamente para o Algarve.
Por outro lado, existem especialidades que são muito carenciadas e não têm idoneidade formativa há vários anos, existindo outras situações em que adquiriram idoneidade formativa há pouco tempo e ainda formam poucos médicos ainda. Assim, alguns médicos que fizeram a sua formação cá ficam no Algarve, outros não.
No Algarve existe carência de projetos de desenvolvimento profissional
Depois, existe outro aspecto muito importante que tem a ver com a questão dos projetos de desenvolvimento profissional. Muitas vezes, no Algarve há alguma carência de projetos deste género e as pessoas acabam por não vir para o Algarve porque não existem esses projetos de desenvolvimento profissional. E porque é que não têm? Porque o Hospital de Faro é um hospital que está perfeitamente colapsado em termos de instalações. As instalações são más, são muito insuficientes, também porque existe uma grande sobrecarga de trabalho. As pessoas perdem muito tempo nas atividades que são de impacto imediato, nomeadamente, serviço de urgência e depois acabam por não ter o tempo suficiente para desenvolverem outros projetos de trabalho e de desenvolvimento. É importante salientar que não existem espaços, não existem equipamentos, sendo que muitos deles já chegaram ao seu limite de vida. Estas circunstâncias fazem com que as pessoas, não tendo perspectiva de se desenvolverem, também não venham para o Algarve.
Como é que se ultrapassa este impasse?
Em primeiro lugar, criando uma coisa que já devia estar em funcionamento há mais de sete ou oito anos, que é o chamado Hospital Central do Algarve.
O Algarve necessita de um hospital mais diferenciado
Era necessário que este hospital fosse um local mais diferenciado, um hospital de ponta, digamos assim. Temos de ter em atenção que estamos a 300 quilómetros de Lisboa e temos uma população grande, com enormes flutuações, a quem temos de dar resposta. Uma forma de nós conseguirmos fazer com que os doentes não cheguem ao Algarve e tenham que ser transferidos para Lisboa é conseguirmos dar resposta aqui. Temos de ter meios humanos e materiais para podermos dar resposta a isso. Essa situação só seria possível com um novo hospital. Este novo hospital passa por não desativar o atual, que tem de passar a ter outra função, nomeadamente em termos de cuidados paliativos, cuidados de convalescência, cuidados de média e longa duração (unidades de cuidados continuados) e, além disso, eventualmente, ter capacidade para ter Unidades de Saúde Familiares e outras valências. Esse é um passo muito importante, porque nos permitirá arranjar equipamentos novos, instalações novas e fazer com que os profissionais se desenvolvam profissionalmente. O nosso desenvolvimento profissional não é uma questão meramente pessoal, é sobretudo uma forma de dar resposta às necessidades dos doentes. É muito confrangedor e triste quando percebemos que se tivéssemos determinados meios poderíamos dar uma melhor resposta aos doentes, fazer mais e melhor e não ter de transferi-los para outros centros mais diferenciados, onde terão esses meios. Essa é uma das grandes questões.
Na função pública não se premeia o trabalho, o mérito
Outra das situações é que na função pública não se premeia o trabalho, o mérito. As pessoas são pagas todas por igual, independentemente d trabalho que realizem, da quantidade ou da qualidade do trabalho que prestem, e isso era uma das coisas que devia ser pensada. Deveria existir um pagamento adicional para aquela que é a chamada produção extra. Há questões que estão contempladas, nomeadamente o SIGIC, que se relaciona com as listas de espera cirúrgicas, onde alguns médicos operam em SIGIC e recebem extras mas, por exemplo, em termos de consultas e outras coisas, nada disso está contemplado. Mais grave do que isso é o facto de no serviço de urgência termos falta de médicos. É necessário recordar que existe muita contratação de médicos de fora, que vêm fazer um serviço que é importante, mas que provavelmente os médicos da casa poderiam fazer com a vantagem de serem médicos daqui.
Os médicos da casa acompanham os doentes ao longo do tempo
O médico que vem de fora contratado, independentemente de ser um bom profissional, é um médico que vem fazer as suas 12 horas e vai-se embora, não está preocupado com mais nada acerca dos doentes. Por sua vez, os médicos da casa vão estar cá preocupados com os doentes e acompanhá-los ao longo do tempo. Esta situação está relacionada com uma portaria que foi aprovada no tempo da Troika que não permite que os médicos sejam pagos de maneira diferente dentro da mesma instituição, dentro do seu trabalho. Isto quer dizer que se eu fizer um banco extra recebo um valor à hora, pelo mesmo valor que consta do meu contrato, segundo a minha categoria profissional. Já os médicos de fora são pagos com valores duplos ou triplos do meu por hora. As pessoas da casa assim também não querem este serviço porque não vale a pena. É uma grande diferença. Trabalhamos o mesmo, temos a mesma qualificação profissional e eles ganham o triplo daquilo que nós ganhamos. Se ganhassem melhor, as pessoas estariam mais dispostas a dar um pouco mais porque também se sentiam recompensadas.
Já foi amplamente noticiado que a urgência de neonatologia e bloco de partos pode fechar já em setembro. O que tem a dizer sobre isto?
É evidente que esta é uma situação perfeitamente anormal. Na unidade de neonatologia e pediatria existe um trabalho específico de pediatras que tem uma certa diferenciação.
Dos 10 funcionários, existem seis de baixa
O corpo clínico dessas unidades é relativamente pequeno. Creio que
neste caso concreto é constituído por dez profissionais. O que aconteceu foi que se deu uma situação excecional, em que duas colegas estão de baixa por doença, outras duas por parto e mais duas estão de baixa porque têm os pais com doenças graves. Num staff de dez, existem seis pessoas fora. As outras quatro não conseguem suportar o trabalho todo. Esta é uma situação excecional que mostra a fragilidade do sistema.
Esta situação já vem desde julho
As pessoas que ficaram têm dado tudo aquilo que têm, mas é claro que também têm limites. Os profissionais têm aguentado tudo. Esta situação já vem desde julho e aguentaram-se durante o mês de agosto, no entanto, chegou o final do mês e disseram que em setembro não conseguiam suportar a situação assim. A solução passa por virem mais pessoas de fora para nos ajudarem. A administração está a fazer todos os possíveis para recrutar pessoas. A unidade continua aberta. Durante a primeira semana de setembro ainda estaria tudo assegurado, a partir daí é que seria complicado. Para conseguir entender melhor, é importante mencionar que são 30 dias, que correspondem a 60 turnos, sendo estes turnos de 12 horas. Para o mês de setembro existiam cerca de 30 turnos vazios, o que significa que tínhamos cerca de meio mês vazio (ainda que em dias intercalados). Nas unidades de cuidados intensivos não podemos estar a admitir crianças ligadas a um ventilador e dizer que hoje temos médicos mas amanhã já não. Isso é impossível. Tem de existir sempre médico de serviço, pelo que se não houver tem de fechar, com o risco de que todos os partos em que se preveja que haja problemas com as crianças também têm de ser transferidos. Agora resta-nos aguardar para ver se conseguiram resolver este problema.
Grande parte dos médicos prefere ir para o estrangeiro em detrimento do seu país. Porque é que acha que isto acontece?
Na prática é uma forma de as pessoas ganharem mais dinheiro. É importante relembrar que este tipo de situação pode acontecer em qualquer profissão. Muitos profissionais também sentem que existiu um grande desinvestimento na área da saúde. Os hospitais estão muito mal preparados em termos de material e as pessoas são jovens, estão em início de carreia, e optam por ir para fora.
É difícil ser médico no Algarve?
A dificuldade que temos tem a ver com os constrangimentos anteriores de que lhe falei, porque de resto os doentes são os mesmo e os problemas também são iguais. O problema maior é o facto de não termos meios para resolver os problemas. É importante salientar que o facto de não conseguirmos resolver certas situações por falta de condições nos causa muita angústia e stress.
Que passos ainda faltam dar para que a região algarvia se torne numa referencia na área da saúde?
Os passos estão contemplados exatamente naquilo que já referi. Outro aspeto que é necessário realçar é a necessidade de uma reformulação em vários centros de saúde da região.
Existem vários centros de saúde que precisam de ser remodelados
Existem instalações que estão velhas e precisam ser remodeladas. Os centros de saúde não têm, muitas vezes, gabinetes para que todos os médicos possam dar consultas. As pessoas não podem trabalhar, por vezes, em full time por causa disso.
A Faculdade de Medicina da Universidade do Algarve celebra 10 anos, considera que tem dado frutos?
Claro que sim. Tem sido muito bom. A Faculdade de Medicina no Algarve tem permitido fixar no Algarve cerca de 30 a 40% dos alunos que estudam cá. A criação do curso no Algarve veio dar um incentivo muito importante também em termos de desenvolvimento profissional. As pessoas que querem ter uma carreira académica, além da carreira de medicina, podem dar aulas aqui, tornar-se assistentes, professores, etc.. A Faculdade do Algarve vem permitir isso e este pode ser mais um fator para que alguns médicos se sintam bem cá e optem por vir para o Algarve.
(Stefanie Palma / Henrique Dias Freire)