Escrevi em tempos que A Construção do Vazio, o anterior romance de Patrícia Reis fechava um tríptico constituído por No Silêncio de Deus (2008) e Por Este Mundo Acima (2011), todos publicados pela Dom Quixote. Ressalve-se que esta conclusão não é minha mas surgia no próprio paratexto do livro, provavelmente na sinopse da contracapa.
Atrevo-me, sim, a afirmar que com o seu mais recente As Crianças Invisíveis, esse tríptico converte-se em quarteto (a suspeita parece confirmar-se na última linha, aliás palavra, do romance) e pode ainda continuar. Em A Construção do Vazio, ficámos a conhecer Sofia, uma mulher que se remete a um silêncio que nem uma terapia de sete anos consegue romper, vítima de maus tratos, violada pelo pai e agredida pela mãe, numa narrativa crua e dura. Em As Crianças Invisíveis, a história centra-se em torno de M., uma criança invisível, que vive «na sombra da vigilância do Estado» (p. 210), devolvida já por duas vezes pelas famílias adoptivas, sendo a razão apontada o facto de sofrer de uma condição cardíaca (o seu coração sente demais), se bem que chega também a ser maltratada: «Ninguém quer uma criança crescida», como se pode ler neste livro.
M. volta assim à Casa, uma instituição de acolhimento, onde convive com outras crianças igualmente rejeitadas com as suas próprias histórias, no seu único refúgio do mundo real. Num registo literário notável, em que consegue uma proeza linguística e narrativa singular, de que nos aperceberemos ao longo do livro mas que infelizmente vem anunciada na sinopse do livro pelo que podem sempre optar por ignorá-la (como eu costumo fazer antes de terminar o livro ou estar já bastante adiantado na leitura), como devem também ignorar o próximo parágrafo isolado em que explico essa singularidade narrativa do romance:
Da mesma forma que M. e as outras crianças, dada a sua invisibilidade, uma vez que não passam de números e de processos, não têm nome, sendo designadas apenas pelas iniciais, também nunca se percebe qual o género de cada uma destas crianças.
Como se na ausência de um nome se reflicta a própria identidade truncada, o vazio das suas vidas suspensas na ilusão de uma família, de uma pessoa a que possam chamar mãe. Apenas os adultos têm nomes. Saberemos, portanto, como é a relação de M. com S., Z., H., conforme esta criança primeiro com 2 anos vai crescendo até atingir a maioridade, e por conseguinte não poder continuar na Casa, tendo de enfrentar o mundo real de uma vida normal, mesmo sem ter tido as ferramentas emocionais que lhe dêem estabilidade e força. Mas M., e aqui reside uma das poucas notas de esperança do livro, tem o apoio e o amor dos adultos que fazem daquela instituição um lar, como a assistente social Conceição, que aprendeu a ler os silêncios de M.. Da mesma forma que M. se irá apaixonar e perceber como a vida pode ser gloriosa e dolorosa.
A violência e a desumanidade da histórias destas crianças ultrapassam a ficção, pelo que custa a crer que haja tantos casos como estes na realidade. Houve investigação feita por parte da autora, o que aliás se pode pressentir no próprio tema da narrativa, uma vez que ainda há dias circulava uma notícia, que já era de 2017, em que se dava conta de como em pouco mais de um ano, mais de 40 crianças cujo processo de adopção tinha sido iniciado (o processo de pré-adopção dura 6 meses, um “tempo de experiência” que as crianças passam com as famílias ou pais singulares adoptivos) foram devolvidas, em diversos casos por causa de condições de saúde.
Patrícia Reis é jornalista, cronista, editora da revista Egoista desde 2000, e estreou-se na ficção em 2004.
A infância é a geografia inicial
Depois de um mundo pós-apocalíptico visto pelos olhos de uma criança em Por Este Mundo Acima (2011); da história de Sofia em A Construção do Vazio (2017), sobre uma mulher que se remete a um silêncio e um vazio que nem uma terapia de sete anos consegue romper, vítima de maus tratos, violada pelo pai e agredida pela mãe; silêncio de uma humanidade em busca de redenção já narrado em No Silêncio de Deus (2008), podemos considerar este romance um novo exercício literário em torno da infância como um tempo precioso que dificilmente se cura? Penso que a infância é, aliás, um universo a que voltas frequentemente.
A infância é a geografia inicial, é aí que está o todo, seja por ser o começo da construção da identidade, seja pelo reconhecimento de emoções tantas vezes negativas. Nada é mais complexo do que crescer, do que ajustarmo-nos ao mundo. O que me importa verdadeiramente são as questões de identidade e as questões relacionais. Tudo na nossa vida nasce ali, na infância, e é definitivo a muitos níveis, mesmo que possamos invocar evolução e desenvolvimento pessoal. Regresso a esse tempo para entender o tempo da idade adulta.
Fala-se muito do trabalho sobre a linguagem neste romance, numa escrita que aborda temas sérios e dolorosos com admirável contenção, distanciamento, numa “escrita límpida, poderosa e cirúrgica”. Inclusivamente conseguiste fazer o que acho que não tinha sido ainda feito na nossa língua, que é escrever um romance sobre uma personagem sem género… Mas mais admirável ainda, na minha óptica, foi conseguires narrar de forma convincente a partir do olhar e sentir de uma criança.
A plasticidade da língua foi um desafio, reconheço, contudo importava que o género não fosse determinante na forma como o leitor pode entender as personagens. O que queria sublinhar é o facto do espectro emocional ser o mesmo, ser para homens ou mulheres exactamente o mesmo: alegria, tristeza, dor, solidão. Nada disto tem género. A língua portuguesa, na sua infinita beleza, permitiu-me fazer este jogo. Foi muito difícil de apurar, não posso dizer que não o foi. O que me importa, na escrita, é a escrita “no osso”, como diria José Cardoso Pires. O vestir a pele da criança, a voz da criança, não é um feito, muitos o têm feito, é apenas o tal regressar à geografia inicial.
Se bem que a leitura de A Construção do Vazio (2017) era já por si um murro no estômago, fizeste aqui uma intensa pesquisa para dar corpo ao romance, fazendo jus à tua carreira de jornalista. Podes descrever os passos que deste?
Ouvi muito. Ouvir é crucial, diria mesmo que é a função primordial do jornalista, que é a minha formação, e é também uma das funções do escritor. Ouvir. Observar. Conheci pessoas que viveram em instituições, profissionais que aí trabalham, pais e mães que adoptaram. Mergulhei no ambiente para melhor entender como fazer a personagem M. seguir o processo de invisibilidade para o de visibilidade, a sua construção de identidade a partir de uma cicatriz, de um trauma. Não foi uma pesquisa jornalística, não o é para a ficção, não tomo notas, não faço perguntas como faria se estivesse a preparar uma reportagem, as coisas que me interessam são outras. Preciso de sentir na pele e de me pôr no lugar do outro.
A imaginação é terrível
Foi tão duro ouvir essas histórias como foi passá-las ao papel?
A imaginação é terrível, é perturbadora, pode potenciar o horror de uma maneira quase violenta. E eu vivo nesse caldo de imaginação, por isso a escrita é, tantas vezes, acompanhada de lágrimas. As histórias que eu ouvi não as declinei directamente para o livro, nem isso faria sentido. As histórias inspiraram a criação de outras histórias. Certas opções narrativas, temáticas, são muito exigentes emocionalmente.
Num ano foram devolvidas mais de 40 crianças com processo de adopção iniciado
Achei curiosa a sincronia de que o livro, publicado em Junho, saiu justamente quando também se anunciava números chocantes de que, num ano, mais de 40 crianças cujo processo de adopção tinha sido iniciado (o processo de pré-adopção dura 6 meses, um “tempo de experiência” que as crianças passam com as famílias ou pais singulares adoptivos) foram devolvidas, em diversos casos por causa de condições de saúde, como é o caso de M..
É uma realidade. O problema é a frieza dos números e o que escondem. Precisamos de proteger estas crianças, é evidente, mas são histórias sem rosto, nesse sentido invisíveis, que talvez não tenham o impacto que podiam ter se fossem desvendados todos os pormenores. Devo dizer que parti para este romance considerando chocante a devolução; depois de tudo que li e ouvi, não sou tão radical, existem circunstâncias.
Leio na condição de M., com o seu problema de coração, uma alegoria a uma criança com falta de amor e que por isso mesmo se torna dura e quase fria…
Achas M. uma personagem dura, quase fria? É engraçado porque a minha leitura é outra, é uma criança sobrevivente e todas as crianças sobreviventes são, em certa medida, crianças com um estrago, uma cicatriz, o que as impele a comportamentos defensivos, mas não frios. O facto de ter optado por uma criança com um problema de saúde, para mais ao nível cardíaco, era também uma metáfora e, em simultâneo, um reflexo da condição humana. Não somos perfeitos. Nenhum de nós. E todos podemos ser olhados de lado, julgados, criticados, descartados com facilidade. Importa sobreviver a essa realidade, encontrar caminhos.
Ao contrário de Sofia, do teu romance anterior, que ficou de tal forma quebrada que dificilmente se poderá reinventar…
A tristeza é uma escolha, uma opção de cada um, sendo que é mais poderosa do que a alegria. É mais fácil ser triste. É mais fácil a queixa ou a crítica, o festejar o outro é mais complicado. O problema é que a tristeza engole as pessoas e isso foi o que sucedeu a Sofia, ela não quis, deliberadamente, fazer nada e, ao mesmo tempo, a vida proporcionou-lhe isso, tinha dinheiro para viver sem precisar de se mexer. A Sofia é uma personagem com outra complexidade, diria que ainda hoje a tento perceber na totalidade.
Neste romance há pelo menos duas surpresas e um piscar de olho aos teus leitores, se bem que devo confessar que não fui propriamente surpreendido. Apercebi-me primeiro que a narrativa era feita com a tal neutralidade de género, mas depois senti, mais e mais, que M. só podia ser um rapaz… Quando o escreveste já tinhas em mente algum desfecho? E quando percebemos, também no final, quem é S., foi algo que eu já pressentia… Ou estarei a tergiversar?
Muitas pessoas acharam que as personagens eram dois rapazes, muitas pessoas achavam que eram raparigas. Houve, aliás, uma amiga que ficou zangada comigo porque tinha entendido como um universo feminino e o fim veio estragar esse cenário que compôs na sua leitura. Portanto, diria que depende do leitor. Eu sabia que M. era menino e só decidi mais tarde o que seria S., sendo que S. é, na maioria das análises, entendida como rapaz por ir parar às oficinas, por trabalhar com madeira, o que prova o meu ponto de que temos ideias feitas e preconceitos que importam deitar por terra.
O ser humano é capaz do bom e do mau, tem de escolher
Daquilo que ouviste e descobriste no teu processo de pesquisa, achas que se pode afirmar que há pais que são intrinsecamente maus?
Como há filhos intrinsecamente maus. Os violadores ou assassinos são filhos de alguém. Acontece apenas que o ser humano é capaz do bom e do mau, tem de escolher e, muitas vezes, a infância já dá pistas nesse sentido. Existem pais que têm as melhores intenções e que não são compreendidos pelos filhos e existem pais que são apenas pessoas más.
Achei ainda curioso a forma como te debruçaste tanto sobre a assistente social Conceição, o adulto que forma a ligação mais forte com M.. Vejo em Conceição o teu cuidado em dar voz à mulher e à dificuldade de a mulher, ao contrário do homem, poder ser julgada quando se dedica demasiado ao trabalho…
A Conceição era a ponte para a realidade exterior à instituição, era a mulher profissional dedicada que falha no casamento e, porventura, no exercício da maternidade. Era a mãe que poderia ser e não foi. E é ainda uma homenagem a muitas mulheres que vi em instituições, profissionais que enfrentam esta realidade diariamente e que ajudam na construção de um futuro.
Já tens em curso o teu próximo trabalho?
Digamos que tenho umas páginas. Nunca entrego um livro à editora sem ter começado outro, preciso de saber que já tenho outro território narrativo no qual navegar, que não fico sozinha, sem personagens na cabeça a pedirem coisas.
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)
(CM)