Corria o mês de Maio. Os campos estavam cobertos de flores e a barra azul do monte pousada num tapete amarelo de grisandras; o vento vergava as searas sobre a terra, catarolando sons frescos que se dispersavam pelas colinas sem fim e se silenciava lá ao longe, onde o céu e o verde se uniam numa ténue linha desfocada que parecia cerrar o horizonte. Como se para lá de tudo o que o olhar alcançava, não existisse mais nada.
É partindo destas lembranças, umas contadas outras vividas, que imagino essa distante Primavera, no momento em que um ai de dor se dilui nos sons da natureza e com a força da vida expulsa das entranhas de minha mãe uma menina indesejada.
Dentro deste corpo que minha mãe pariu, nasceu e cresceu uma vida ao deus-dará; por um lado, colorida de encantos e sonhos, com aromas e cores da Primavera que me acolheu e, por outro, já a vida me enleava em laços de erva daninha que minava os terrenos virgens da minha tenra existência.
Assim, afagada pela aragem morna do vento que passava, surgi apagando as esperanças de quem me esperava no masculino incendiando-lhe rastilhos na imaginação, que por consequência desta minha condição feminina, se veria obrigada a deixar semear de novo nas terras do seu corpo já cansadas!
Era já hora de queimar o restolho, lavrar os campos dentro de si e deixar que florisse ou secasse em qualquer canto, a última colheita do seu ventre. Era hora de abrir de novo os braços, sem remédio nem desejos de abraçar; nem sequer resignação nessa sua condição de mulher e mãe que, a cada filho que somava, subtraía um pouco mais daquele espaço que os sonhos alargam e a distância dói. Era de novo hora de ocupar os terrenos esvaziados por este filho, nascido mulher!
Da âncora que me manteve amarrada, durante os últimos nove meses, ao único porto seguro que conheci, restava um pequeno e frágil cordão preso a mim e eu, desamparada, presa a ninguém. Um medo inconsciente deixava-me sentir a distância que crescia entre mim e todos os portos, e todos os cais onde atracar em segurança.
Um medo que eu sentia em sons de palavras repetidas, não sei se neste mundo onde de olhos abertos tudo ainda me soava desfocado, ou se, em todos os meus sentidos, transportara em mim as tempestades e dúvidas vividas através do ventre de minha mãe, para este imenso vazio de afetos, no qual, cada olhar, cada palavra e sentimento, não tinham lugar onde se aninhar. Como que um eco perdido num enorme espaço desabitado e aberto ao mundo, sem teto onde se abrigar, paredes onde embater, nem chão onde pousar a vida!
Nasci assim, entre mim e toda a terra firme. Um deserto sem fim e um mar de medos. À deriva da sorte e da vida!
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de junho)