Sempre me impressionou o final do Simpósio. O que aí se relata é de somenos importância com respeito aos conteúdos filosóficos desse diálogo platónico que versa sobre Eros. Tudo se passou em casa de Agatão, que oferecia uma ceia para, de forma mais íntima, celebrar o facto de a tragédia que escrevera ter sido premiada. Para a ocasião, Sócrates banhou-se, vestiu-se a preceito e calçou até umas sandálias, o que não era nada habitual, pois costumava caminhar descalço. Desse convívio, em que se comeu até ficar saciado mas se bebeu com moderação a fim de “não transtornar as cabeças” para poderem conversar, ficaram para a posteridade os discursos de Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agatão e Sócrates, e também o apaixonado elogio de Alcibiades a este último. Findos os ditos discursos, uma nova onda de convivas juntou-se à festa para beber e celebrar. Estes “não mais obedeceram a qualquer regra e foram por isso obrigados a beber vinho em profusão”. Por isso mesmo, Fedro, Erixímaco e os outros retiraram-se. Aristodemo, conviva que esteve presente nessa noite e que relatou os acontecimentos a Apolodoro, cujas palavras Platão terá então registado, afirma que tendo dormido longo tempo, pois “os galos cantavam e o dia já despontava quando acordou”, apercebe-se então de que os outros ou ainda dormiam ou já tinham partido e que “apenas Agatão, Aristófanes e Sócrates se mantinham ainda acordados e bebiam por uma grande taça, que passava da esquerda para a direita”. Até que por fim Aristófanes e Agatão também adormeceram, já a manhã ia alta. Eis aqui o último parágrafo deste relato: “Tendo-os deixado adormecer, Sócrates levantou-se e saiu. Aristodemo seguiu-o como era seu costume, Sócrates dirigiu-se ao Liceu e depois de se ter banhado, passou o dia nas suas ocupações habituais e, finalmente, ao cair da tarde recolheu a casa para descansar.”
Causa-me perplexidade o facto de Sócrates, depois de uma noitada, em vez de descansar ter ido para o Liceu. Ali deverá ter praticado ginástica e depois terá iniciado alguma conversa peripatética. O pós-noitada foi um dia como os outros: não alterou em nada as suas rotinas, não parecendo que os excessos de comida e de bebida aliados à falta de um sono reparador lhe tenham causado qualquer cansaço ou afrouxamento das qualidades físicas e intelectuais.
Evidentemente, a maioria de nós não poderia ter-se comportado desse modo. Muito simplesmente, seriamos incapazes dessa disciplina. Esta é uma das palavras que tais como a honra, a delicadeza ou moral, está a ficar fora de moda! Como fora de moda estão certos comportamentos que se lhe associam.
Disciplina
Entre os sinónimos das palavra disciplina encontramos os seguintes: obediência, acatamento, restrição, sujeição, subordinação, cumprimento, condicionamento. A sua relação com o estabelecimento de limites é nítida aqui. Tendemos a pensar que o limite é algo mau, no entanto, para alguns filósofos pré-socráticos, o limite era mais perfeito que o ilimitado. A filósofa María Zambrano (1904-1991) também reflecte sobre o limite de forma positiva: “o leito é tão necessário ao rio, que sem ele não haveria rio, mas pântano. As águas ao evadir-se teriam um instante de ilusão de ter alcançado liberdade, de ter recuperado a integridade do seu poder. Mas o poder ir-se-ia esgotando perante a falta de limites; mesmo sem mais obstáculos que a extensão ilimitada, a fúria da água desceria vencida sobre o plano ilimitado. O leito faz o rio tanto como a fúria da água que por ele passa”.
No campo do yoga, a disciplina ou tapas, por vezes traduzida como sacrifício, é a terceira das Nyamas (normas de auto-aperfeiçoamento): “tapas traz a destruição das impurezas, o que leva à perfeição dos sentidos do corpo. [kaya]. [A realização do tapas traz inteligência corporal para o indivíduo, o que significa que ele age e se expressa com muito mais desenvoltura e espontaneidade que os demais].” (Patandjali Sutra II, 43)
No Budismo tibetano a disciplina é o segundo dos seis paramitas ou perfeições em que há que treinar. Antes haverá que ter treinado nos quatro incomensuráveis que fazem parte do bodhichitta de aspiração: amor, bondade, compaixão, alegria e imparcialidade. Quando a aspiração, nestas quatro componentes, estiver estabilizada pode então iniciar-se o treino nos seis paramitas pertencentes ao bodhichitta de aplicação: generosidade, disciplina, paciência, diligência, concentração e sabedoria ou insight. Os primeiros quatro têm três sub-divisões cada um, o quinto duas sub-divisões e o sexto é de apenas um tipo. Concentremo-nos no paramita da disciplina que, como dissemos, se subdivide em três aspectos. O primeiro consiste em abster-se de acções prejudiciais. As acções prejudiciais, por sua vez, podem ser de dois tipos: a primeira diz respeito a cometer qualquer das dez acções não virtuosas que se organizam em três grupos: corporais (matar; roubar; má conduta sexual); verbais (mentir; caluniar ou intrigar, falar grosseiramente; manter uma conversa ociosa); mentais (invejar; ter má vontade; ter uma visão errónea). Além destes dez, existe um outro tipo de comportamento prejudicial que consiste em quebrar um voto. Evitar estes dois tipos de transgressões é o primeiro modo de aplicar a disciplina.
O segundo tipo de disciplina consiste em ser virtuoso através de pensamentos, palavras e actos. Não importa se o que conseguimos fazer é algo grandioso ou muitíssimo pequeno, basta que seja íntegro, honrado. O terceiro tipo de disciplina consiste em trabalhar para o bem dos outros. Existem imensas formas de beneficiar os outros directa ou indirectamente conta, sobretudo, a motivação com que o fazemos. Os primeiros cinco paramitas precisam de ser abraçados pelo sexto, o insight, uma sabedoria liberta de conceitos.
Contudo, saber enumerar os paramitas na ordem correcta e conhecer todas as suas sub-divisões e articulações de nada serve, se não se praticar. No dia a dia, como treinar a disciplina?
Escolha uma tarefa que tem de ser feita e observe a sua disposição. É boa ou nem por isso? Quando eu era pequena a minha mãe costumava dizer-me: “é melhor aprenderes a gostar de fazer a cama porque tens de a fazer todos os dias!” Grande conselho! Ao fazer as coisas com gosto tudo flui melhor, parece que custa menos. Não se trata aqui do sentimento de agrado que resulta da tarefa cumprida, terminada, mas antes do desfrute que se obtém durante a sua realização. Para tarefas menos atractivas podemos concentrar-nos nos benefícios que acarretam tornando-as, desse modo, mais apetecíveis. Cultivar a boa disposição é imprescindível, pois qualquer tarefa se desempenha, então, mais facilmente. E como se cultiva a boa disposição? Treinar a generosidade – primeiro paramita – é um método eficaz. O acto de dar, de partilhar, põe-nos imediatamente bem dispostos. E de bom humor somos muito mais capazes de ser disciplinados.
Se observarmos bem, cada paramita facilita o que se lhe segue. Veremos como no próximo Café Filosófico!
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(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Novembro)