O Francisco descarregou com impaciência o novo e-bookpara dentro do seu sistema neuronal. E pensar que nos tempos antigos as pessoas tinham de fazer downloads,e ler as coisas em ecrãs digitais que faziam tanto mal à visão! Já para não falar das palavras passes que tinham que recordar, e de todo esse lixo de pop upsque apareciam nos ecrãs, sempre a distrair e a irritar! Tinham estudado esses horrores da multimédia antiga na disciplina de História e, tal como ele, todos os colegas tinham reagido com incredulidade. Esta incredulidade, no seu caso, tinha dado lugar a uma curiosidade crescente sobre os tempos antigos de tal modo que, pelo seu aniversário, os pais lhe tinham oferecido um acesso ilimitado à base de dados da biblioteca dos tempos antigos, onde se incluíam os séculos XX e XXI, que tanto interesse lhe despertavam. Lia avidamente, de olhos fechados, o seu novo livro até que esbarrou numa palavra: “convívio”. Leu e releu, tentou perceber o que é que esta palavra queria dizer mas não conseguiu!
Ligou o sistema de gravidade quadrangular do seu quarto e pôs-se a caminhar pelas 4 paredes da divisão, gostava dessa sensação de mudar o acima e o abaixo, o lado esquerdo e o lado direito, ajudava-o a mudar de ponto de vista e a encontrar soluções para os enigmas. Caminhou durante longo tempo pelas quatro paredes, lembrando-se dos passeios peripatéticos dos Gregos do início da época pré-histórica. Foi em vão! Não conseguia perceber o que queria dizer convívio. Ligou a gravidade unidirecional, sentou-se e pressionou o botão do intercomunicador.
Do outro lado a voz do seu preceptor andróide soou melodiosa: “Olá Francisco, em que posso ajudar-te?”.
“Olá, olá… diz-me por favor o que significa convívio!”
“Tentaste averiguar pelo contexto?”
“Sim.”
“Recorreste à origem etimológica da palavra?”
“Sim. Cito: ‘acto ou efeito de conviver; relacionar-se de forma próxima; relações amigáveis; do latim convivium: participação em banquete.’ Não percebo nada disto!”
Do outro lado do intercomunicador o andróide pareceu emitir um longo suspiro: “Francisco, sabes que nos tempos antigos os humanos tinham o hábito de fazer as suas refeições juntamente com outros humanos, sentavam-se todos a uma mesa e comiam.”
“Mas que trabalheira! Arranjar tempo para isso! Para se encontrarem e para se sentarem e com uma mesa, para que era a mesa?”
“Nos tempos antigos as refeições eram feitas de alimentos e não de comprimidos como agora. A mesa servia para colocar os pratos, os copos e os talheres de que se serviam para comer.”
“A sério?! Mas que canseira!”
“Sim, é verdade. Existam sítios chamados restaurantes aos quais os humanos iam quando não queriam cozinhar eles próprios nas suas casas. As pessoas sentavam-se umas com as outras em volta da mesma mesa, comiam, bebiam e conversavam, a isto se chamava conviver. Uma refeição dessas podia levar várias horas!”
“Horas?! Mas agora comer leva um segundo! É só engolir o comprimido! Que estranhos tempos esses!”
“Sim Francisco, a nova era só começou na primeira metade do sec. XXI, mais precisamente em 2020. Até lá os humanos costumavam viver uns com os outros e encontravam-se com outros humanos, para trabalhar ou para realizar actividades de ócio. Também era muito comum as famílias encontrarem-se e celebrarem certas datas juntos: os aniversários; o Natal; a Páscoa, etc. Todos esses eventos incluíam refeições em comum com mesas e cadeiras e os humanos sentados uns junto aos outros numa mesma divisão.”
“Isso é muito difícil de imaginar! E devia ser deveras perigoso toda a gente a respirar assim junta!”
“Sim, até Abril de 2020 estes ditos convívioseram não somente possíveis mas frequentes. Os humanos costumavam, inclusivamente, encontrar-se para dançar juntos.”
“Dançar? O que é isso?”
“Dançar é movimentar o corpo, geralmente ao som de alguma música. Os humanos podiam inclusivamente agarrar-se. Em algumas zonas do globo, no continente africano, por exemplo, existiam danças em que o homem e a mulher se movimentavam com o corpo de um colado ao corpo do outro.”
“Corpo a corpo? Mas já tinham fatos de silicone?”
“Não, Francisco. Nos tempos antigos os humanos tocavam-se, era pele com pele.”
“Ai que nojo! E se transpirassem? Ficavam com as secreções corporais misturadas!”
“Correcto Francisco. Mas isso, naquele tempo, era normal. Os humanos diziam até gostar de sentir essas secreções uns dos outros, e os seus cheiros.”
“Mas que repugnante!”
“Nessa época também se juntavam para procriar. Só em casos muito excepcionais é que se utilizava a fertilização in victro.”
“Que loucura! E quando é que a civilização começou?”
“Variou um pouco de país para país. Aqui em Portugal costuma considerar-se o dia 18 de março de 2020 que foi quando foi promulgado o primeiro estado de emergência devido à pandemia Covid-19. As pessoas foram obrigadas a ficar em casa, passaram a trabalhar através da internet e foi decretado o distanciamento social.”
“Foi aí que acabou o convívio?”
“Exactamente Francisco, aprendeste bem a lição!”
***
O escritor de ficção científica Julio Verne (1828-1905) previu, com uma margem de erro de escassos quilómetros, o local onde viria a realizar-se o lançamento da primeira nave espacial para a lua. Vaticinou também que os carros deixariam de ser movidos por cavalos e passariam a dispor de um “motor invisível”. A máquina de calcular, comboios subterrâneos, o submarino, ou transportes que “flutuam no ar” foram outras das suas certeiras antevisões.
Com todo o ardor desejo que a primeira parte deste texto não seja uma inspiraçãoa la Julio Verne! Que o princípio do distanciamento social não marque o início de uma nova era ascética em que deixamos de tocar uns nos outros, que a palavra convívio não caia em desuso ao ponto de a deixarmos de conhecer.
Onde começou tudo isto? Não me refiro ao aparecimento de um vírus novo, inimigo invisível com o qual estamos a tentar lidar. Refiro-me ao enquadramento mental de separação que agora atingiu proporções inimagináveis!
Foi o filósofo René Descartes quem no séc. XVI estabeleceu uma linha de fronteira entre a mente ―res cogitans―e o corpo ―res extensa. No fundo, Descartes era herdeiro da antiguidade clássica de acordo com a qual a mente cognitiva é o que de mais elevado a humanidade possui, e o corpo um empecilho para o avanço do conhecimento. Daqui ao estabelecimento da impassibilidadee da independênciacomo notas do entendimento, foi apenas um passo. O progresso científico fez da objectividade a sua alavanca. Desprezados os sentimentos, desdenhámos as ligações.
De acordo com a antiga filosofia indiana dos Vedas, o universo é uma entidade coesa
Agora, em pleno séc. XXI, estamos a sofrer as consequências de tanta independência! Considerámo-nos entidades individuais, como se possuíssemos uma auto-existência, esquecemos o quanto em verdade dependemos uns dos outros e, mais ainda, o quanto dependemos do planeta!
A medicina ayurvédica, que se baseia na indiana filosofia dos Vedas que data de 1500 a.c. entende o ser humano, não como uma entidade individual mas antes como um ser com raízes cósmicas, ligado não apenas ao planeta onde nasceu mas a todo o universo. Este enquadramento tem consequências profundas para a saúde e para o modo de conduta. A terra já existia biliões de anos antes da vida humana ter surgido. As árvores, por exemplo, são muito mais antigas que nós. Em Dezembro de 2019 uma equipa de investigadores da universidade de Binghamton, Nova Iorque, descobriu um extenso sistema radicular de árvores com 385 milhões de anos, que existiam durante o período Devoniano. As árvores com sementes apareceram 10 milhões de anos mais tarde.
De acordo com a antiga filosofia indiana dos Vedas, o universo é uma entidade coesa. Contudo nós, humanos, vivemos preocupados com a nossa individualidade, completamente surdos para o pulsar da harmonia planetária. Ávidos de sucesso vivemos obcecados pelas nossas conquistas. Na realidade comportamo-nos como adolescentes imaturos!
De acordo com a medicina ayurvédica, inspirada na filosofia dos Vedas, “Cada árvore, cada montanha, cada nuvem, cada nascente reflecte a luz do universo. A memória cósmica é mantida e refinada pelo código genético em todas as formas de vida. Por esta razão, a comunidade cósmica prevalece sobre todos os habitantes da Terra. Quando andamos, corremos ou escalamos, cada célula lembra-se do início da vida. A própria terra possui uma memória cognoscente dos seus cerca de 10 milhões de espécies! O nosso movimento, as nossas acções criam as condições para a actualização dessa memória. Quando contemplamos a beleza de uma nascente a cintilar ao sol, ou provamos o néctar de um pêssego maduro, ou até em momentos mais passivos, quando o vento nos acaricia a pele, ou quando as nossas narinas se inundam pela fragrância de uma flor, nós experienciamos os elementos―estimulamos a nossa memória cognitiva.” (Maya Tiwari, Ayurveda. A Life of balance).
Talvez valha então a pena recordar que não somos uma existência separada, que pelo contrário estamos ligados e somos dependentes. Dependentes dos outros, dependentes deste planeta que habitamos, dependentes do universo no qual obtivemos esta fantástico improvável dom da vida! E se ajustássemos o nosso comportamento a esta realidade?…
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de junho)