Gabriel planeia celebrar o octagésimo aniversário da mãe e, para isso, terá de contactar as suas duas irmãs Sonia e Andrea, com o propósito de reunir a família para este evento que deveria ser motivo de celebração e alegria. Depois de tanto tempo, um almoço de aniversário afigura-se a ocasião perfeita para se voltarem a juntar todos. Mas esta não é uma família dessa natureza. Se todas as famílias são felizes à sua maneira, esta sabe foçar particularmente bem na infelicidade e no rancor. Por isso mesmo esta sinopse enganosamente simples não pode dar conta da complexidade e singularidade deste romance.
Luis Landero constrói um poderoso romance polifónico, cuja maioria dos capítulos constitui diálogos, sempre por telefone, em que a conversa telefónica do momento alterna ainda, por vezes de modo sobreposto, com conversas anteriores que estão a ser agora relatadas ou recontadas ao telefone, pois quer Sonia quer Andrea, assim que ficam a par da intenção do irmão, ligam para a cunhada Aurora, a mulher de Gabriel, com quem desabafam as suas mágoas e os seus rancores. E é nesses telefonemas de Sonia, Andrea e, por vezes, até da mãe delas para Aurora, a confidente, sempre atenciosa e atenta, que estas mulheres destilam a peçonha que, décadas depois, continuam a conseguir extrair de velhos episódios familiares, retratados conforme a perspectiva de cada uma: «cada qual com a sua história, horas e horas de histórias intermináveis, quase todas cheias de minúcias mil vezes ouvidas e que elas nunca se cansavam de repetir, com as suas versões contraditórias, onde não havia episódio, por mais pequeno que fosse, que não tivesse variantes, que não rebatessem ou negassem entre elas, que não admitissem os mais prolixos e tortuosos comentários, de modo que Aurora tinha a esgotante impressão de estar imersa num pesadelo de que era impossível despertar.
E assim, ano após ano, todos os dias de todos os meses, a qualquer hora, foi ficando a saber o argumento exato das vidas deles.» (p. 195)
Um só acontecimento origina assim várias versões, relatos antagónicos, sentimentos díspares, conforme é lembrado por cada uma das personagens. A narrativa abre e fecha com Aurora, que pelo seu sorriso bonito e triste, o seu ar terno e melancólico, sempre se revelou uma boa confidente para as histórias dos que com ela convivem. Mas Aurora coloca em risco a sua própria inocência e paz de espírito quando finalmente percebe que não há histórias inocentes, enquanto se deixa enredar nas teias de aranha destas histórias familiares: «(…) todas as versões de todas as histórias acabam por confluir em Aurora. Ela é, na verdade, a única dona absoluta da história, aquela que sabe tudo, o enredo e o avesso do enredo, porque só confiam nela e só falam com ela, com todo o tipo de detalhes, sem vergonha nem reparos, todos e cada um dos implicados nesta história, que começou por ser trivial e até festiva e que acabou em ruína e em desastre, como ela intuiu desde o primeiro momento.» (p. 13)
Uma forte particularidade do romance é o modo como a vida das personagens é sempre tratada como uma história, em que todas elas são autoras das suas próprias narrativas, mesmo quando essa é uma narrativa vazia: «Nunca, nunca, mesmo que não aconteça nada, as pessoas param de contar a sua história e, se o Inferno existir, também nele continuarão a contá-la ao longo de séculos e mais séculos, dando corda uma e outra vez ao brinquedo das palavras, tentando compreender minimamente o mundo apalpando o absurdo da vida em busca talvez de um botão que abra o seu fecho cego, como a gruta de Ali Babá ante o conjuro da palavra mágica, revelando-nos o grande tesouro da razão, da luz, do real sentido das coisas…» (p. 199)
A acção decorre ao longo de seis dias apenas, em que os segredos familiares são desenterrados, até que se desvela uma história particularmente macabra em torno de um homem que tem em casa um museu de brinquedos e que trata a mulher como se fosse a sua criança…
Luis Landero, considerado um dos nomes essenciais da literatura espanhola, nasceu em Badajoz, em 1948. Licenciado em Filologia Hispânica pela Universidad Complutense, lecionou Literatura na Escuela de Arte Dramática de Madrid e foi professor convidado em Yale. Estreou-se na literatura em 1989, com o romance Jogos da Idade Tardia (Prémio da Crítica e Prémio Nacional de Narrativa 1990). Chuva Miúda, agora publicado pela Porto Editora e com tradução de Miguel Filipe Mochila, foi considerado pela crítica o Melhor Romance do Ano em Espanha.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de abril)