Já passava das 13h30 em Portugal e das 9h30 desta quinta-feira no Brasil, quando cerca de mil pessoas se concentraram no Salão Nobre da Universidade de São Paulo, e outras tantas por volta das 11h00 nos famosos pilotis da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), espaço que historicamente abrigou manifestações estudantis contra a ditadura militar.
Foram para ouvir a leitura de dois manifestos pelo Estado de Direito. Minutos antes de ser lido o primeiro texto, redigido em conjunto por representantes dos empresários e dos sindicatos, forças policiais concentravam-se no centro da cidade para garantir a segurança.
O ponto alto, contudo, será a leitura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito”, texto apartidário concebido por um comité de professores da USP e que no dia em que foi lido publicamente contava com 915 mil assinaturas, entre jornalistas, juízes, políticos, artistas e pessoas dos mais variados quadrantes da sociedade brasileira.
A carta é clara: “Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e sectores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional. Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.”
Para concluir de forma enfática: “No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições. Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre!”
SOBERANIA POPULAR
O jornal “Estado de São Paulo” explicava que a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito!” seria lida por quatro mulheres, entre as quais as professoras da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Eunice Aparecida de Jesus Prudente, única docente mulher e negra da instituição do Largo de São Francisco, e Maria Paula Dallari Bucci, filha do professor Dalmo de Abreu Dallari, que morreu em abril deste ano e foi signatário da “Carta aos Brasileiros”, de 1977.
Dentro da Faculdade de Direito foi permitida a presença de 1200 pessoas no Salão Nobre, das quais, 200 estudantes, para ouvirem o primeiro documento. Do lado de fora, ecrãs permitiam que a assistência estimada entre cinco e oito mil pessoas seguisse a leitura dos dois manifestos. Tendo conquistado o apoio de várias organizações da sociedade civil, de diferentes cores partidárias e origens, o momento foi aproveitado para ampliar a adesão aos manifestos desencadeando a organização de manifestações em defesa do processo eleitoral brasileiro. Apenas na cidade de São Paulo, três passeatas estão previstas ao longo desta quinta-feira.
A carta pela democracia será ainda lida em simultâneo em dezenas de faculdades de Direito, associações e escolas nas cinco regiões do Brasil e ainda no King’s College, em Londres. Na véspera, um grupo de dezenas de artistas participaram na leitura do documento, divulgado nacional e internacionalmente.
DATA SIMBÓLICA
Há 45 anos, outro movimento de convocação da sociedade marcou a história do Brasil. No ano em que o Presidente militar Ernesto Geisel encerrou o Congresso e que ficou marcado pela aplicação do Ato Institucional número 5, que ficaria conhecido como o temido AI-5, que assegurava poderes ilimitados ao chefe do Executivo.
Em 1977, o jurista e professor Goffredo da Silva Telles Júnior foi convidado para elaborar a carta. No documento da altura, denunciava-se a “ilegitimidade” do regime militar que governava o Brasil.
“Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos direitos humanos, contra a opressão de todas as ditaduras”, lia-se num dos trechos iniciais da “Carta aos Brasileiros” de 1977.
A data desta quinta-feira é simbólica porque foi também a 11 de agosto de 1827 que D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal decretou a instalação dos cursos jurídicos no Brasil. Até então, a elite intelectual brasileira tinha de concluir os seus estudos superiores quase sempre em Coimbra.
O policiamento foi reforçado e algumas ruas nas imediações do Largo de São Francisco, no centro da maior cidade da América do Sul e a mítica morada da Universidade de São Paulo, foram encerradas à circulação. A cavalaria e veículos da Polícia Militar sinalizavam o incremento das medidas de segurança.
Antes da carta desencadeada pela USP, foi lido o manifesto da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), que representa o principal núcleo empresarial do Brasil, articulado em conjunto com as centrais sindicais e com outros setores da sociedade civil. Às 11h30, hora brasileira, no Pátio das Arcadas da universidade, foi lida a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito”.
“Queremos eleições livres e tranquilas, queremos um processo eleitoral sem fake news ou intimidações. A universidade brasileira é o oposto do autoritarismo” afiançou o reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior.
“No chão do nosso território livre”, afirmou ainda o reitor para encerrar o seu discurso e dar as boas vindas e antecedeu a leitura dos manifestos, sublinhando a necessidade de se conquistar “uma vida digna” para todos os brasileiros.
Os dois textos foram concebidos nas últimas semanas, após o Presidente Jair Bolsonaro ter convocado os embaixadores colocados no Brasil para expor as suas críticas ao atual processo eleitoral caracterizado pela utilização de urnas eletcrónicas.
A jornalista Mônica Bergamo, da “Folha de S. Paulo”, avançava, contudo, que entre os quase um milhão de subscritores estavam mais de dois mil militares e mais de oito mil policiais, revelando fracturas mesmo entre os potenciais apoiantes de Jair Bolsonaro.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL, com jornal POSTAL