É considerada a última batalha exclusivamente travada entre navios de vela em águas portuguesas. E foi decisiva para o desfecho da guerra civil de 1832-1834.
Um conflito que opôs os liberais afectos a D. Pedro, regente em nome da Dª Maria II, aos realistas de seu irmão D. Miguel.
As duas armadas enfrentaram-se no dia 5 de julho de 1833, ao largo do Cabo de S. Vicente. Mais do que uma guerra entre irmãos, foi um confronto de duas ideias de poder para o Portugal de então: de um lado, os defensores da ordem real absolutista, do outro, os adeptos de uma mudança constitucional conforme os ventos que sopravam da revolução francesa.
O domínio da orla costeira era um objetivo estratégico de importância vital para o desfecho da guerra. O poder estabelecido de D. Miguel, determinado a assegurar a manutenção do regime tradicionalista, detinha o domínio dos mares, enquanto as hostes de D. Pedro viam no controlo da faixa atlântica uma plataforma essencial para apoiar as operações em terra das forças liberais.
Neste quadro, o governo pedrista decide enviar para as costas do Alentejo e Algarve uma formação naval com o objetivo de ali fazer desembarcar forças militares que permitissem abrir uma nova frente de guerra civil, avançando sobre Lisboa a partir do sul. A reação dos miguelistas não se fez esperar, tendo deslocado para aquela zona a sua melhor esquadra.
Sendo esta batalha entre as tropas dos dois irmãos, acabou, de certa maneira, por ser um conflito marítimo entre portugueses e ingleses, dado que eram britânicos os comandantes que lideravam praticamente todos os navios da armada liberal.
O esquadrão afecto a D. Pedro, sob o comando do vice-almirante inglês Charles John Napier, alinhou-se em formação de combate na expectativa da reação da armada miguelista, liderada pelo almirante António Aboim. Os absolutistas eram detentores de uma força militar superior, quer em número de navios, quer no que respeita ao seu poder de fogo. Contavam com 372 peças de artilharia contra as 176 bocas de fogo dos vasos de guerra contrários. As duas armadas avistaram-se no dia 3 de Julho, mas só depois de dois dias de manobras deram início às hostilidades.
O dia era de sol, uma sexta feira. Súbita calmia do mar e do vento.
A armada miguelista hesitou permitindo à esquadra liberal através de um golpe tático inesperado, iniciar uma operação de abordagem e assalto. As hostes de D. Miguel, preparadas para um duelo de artilharia convencional, foram surpreendidas pelo recurso ao combate de proximidade, quase corpo a corpo, adoptado pelos fiéis de D. Pedro, que lograram anular a desvantagem e de poder de fogo que favorecia as partes inimigas.
O almirante inglês deixou o relato escrito: “O inimigo conservava-se em linha cerrada, e reservou o seu fogo até nos acharmos bem a tiro de fuzil (…): o momento era crítico, e todos nós o conhecíamos (…) Eu olhei para cima, esperando ver todos os mastros ao vai-vem; mas a flâmula tremulava no topo, e não obstante o mais tremendo fogo que jamais tinha presenciado, que fazia borbulhar o mar que nos rodeava, como um caldeirão a ferver, o fumo tendo-se dissipado, descobriu aos miguelistas assombrados a (nossa) fragata Rainha”.
Aproveitando a confusão do primeiro embate, Napier lançou-se à abordagem do inimigo, tentando o aprisionamento dos seus navios: “A este tempo ainda nós não tínhamos dado um só tiro, (…) o chefe de Divisão Wilkinson e o capitão Carlos Napier, comandando a gente d’abordagem saltaram de cima das âncoras para a amurada da nau (miguelista), e levaram adiante de si aquela parte da guarnição ao longo dos bailéus de bombordo”.
E o almirante prossegue a sua descrição: “Eu não tinha tenção de ser um dos da abordagem, tendo bastante que fazer em tomar cuidado na esquadra, porém, o impulso era demasiadamente forte, e achei-me, quase sem saber como, em cima do castelo de prôa da nau, acompanhado de um ou dois oficiais. Ali fiz pausa, até que saltando mais gente dentro do navio, corremos para ré dando um grande: Viva! – e ou passámos pelo meio, ou repelimos pela escotilha grande abaixo, uma partida dos inimigos”.
Sem poupar nos pormenores, Napier adiantou: “Neste momento recebi um severo golpe com um pé-de-cabra, cujo dono não escapou a salvo, e o pobre Macdonough, caiu a meu lado trespassado por uma bala de fuzil; Barreiros, comandante da nau, apresentou-se na minha frente, ferido no rosto, e batendo-se como um tigre. Era um homem valente; eu salvei-lhe a vida. Veio depois o 2.° comandante, e atirou-me uma tão boa cutilada, que não tive coração para lhe fazer mal; também ficou salvo. Barreiros pegou outra vez em armas, e a final foi morto na câmara”.
Após estes e outros combates corpo a corpo e disparos à queima roupa, com perdas para ambos os lados, os navios miguelistas começaram a render-se .
“Estávamos já senhores da tolda (…) Dentro em poucos minutos tudo estava tranquilo; a última coberta tinha-se rendido, e muitos dos marinheiros portugueses saltaram para cima da tolda para salvar-se, trazendo tiras de lona branca nos braços esquerdos. Outros puderam passar-se para bordo do meu navio. Dei ordem a D. Pedro para tomar posse da nau e dei caça ao Martim de Freitas e ao Vila Flor. A corveta Princesa Real, rendeu-se também. Pouco tempo depois estava eu prolongado com a Nau Rainha (navio Almirante) que se rendeu sem dar um único tiro”.
Nas contas de Napier, no respeitante à perda de vidas, a esquadra liberal “andou por uns noventa mortos e feridos” enquanto os miguelistas perderam “duzentos a trezentos homens”.
O desastre foi enorme, e com esta batalha a armada fiel a D. Miguel praticamente desapareceu. Os liberais ficaram com o domínio pleno do mar, o que se veio a revelar fundamental para a sua vitória na guerra menos de um ano depois.
Antecipando este confronto marítimo, as tropas liberais chefiadas pelo duque da Terceira, haviam desembarcado a 24 de junho na praia da Alagoa, entre Cacela e Monte Gordo, conquistaram o Algarve, e iniciaram a sua progressão em direcção a Lisboa e à vitória final.
Derrotado, D. Miguel viu-se forçado a abdicar a favor de D. Maria II, na Convenção de Evoramonte assinada a 26 de Maio de 1834. Dia do seu 33º aniversário.
Partiu num barco inglês, de Sines para o exílio, de onde já não regressou em vida.
Fontes: “A guerra de sucessão em Portugal”, Charles Napier, com trad. de Manoel Codina; “As guerras liberais, Revista da Armada, nº 488”, Moreira Silva; Gravura da Biblioteca Nacional; outras