Este Verão, enquanto se transpira na Alemanha, Holanda, ou França, refresca-se nas praias do Algarve.
Que terá dado a Zeus, agitador de nuvens, para brincar com as temperaturas?
Que terá dado a Éolo, comandante dos ventos, para convocar Bóreas, nortenho frio e violento, para fustigar as nossas praias? Que é feito de Zéfiro, o vento oeste, com a sua brisa suave e agradável de final de tarde? Devemos ainda temer Euro, de leste, criador de tempestades? Alegremo-nos por Noto, do flamejante sul, nos ter poupado a sua ira, enquanto sopra impiedoso por toda Europa a norte de nós.
Que terá dado a Poseidon para nos esfriar as águas do oceano, em época de nos banharmos nele? Ou para nos enviar mantos de algas verdes que dissuadem veraneantes e cobrem as brancas areias como se alguém relvasse a praia? Ou ainda para nos inquietar com algas vermelhas, de teor desconhecido, que concentram os estudos dos investigadores e proíbem de mariscar?
Que terá dado a Perséfone, que já não passa metade do ano com seu marido Hades nas profundezas, mas permanece todo o ano sobre a terra? Será que as plantas de tanto florirem sem descanso não se extinguirão? E as borboletas, abelhas e libélulas, quem as salvará da confusão?
Quione, deusa da neve, adoeceu. Mesmo a feroz Despina, deusa das geadas, parece afectada por um distúrbio qualquer: graniza a destempo destruindo colheitas e capôs de automóveis; derrete lagos quando era altura de se patinar neles; e abandonou os polos, tanto o do norte como o do sul, que choram lágrimas de degelo pedindo-lhe que regresse, mas em vão!Durante séculos Prometeu padeceu a sua sentença: agrilhoado a um rochedo, uma águia vinha pela manhã comer-lhe o fígado, demorando todo o dia em cruel degustação. Pela noite o órgão reconstituia-se para que o suplício se voltasse a repetir no dia seguinte. Jamais vacilou! Roubou o fogo de Hestia para o dar aos mortais, o que permitiu que estes desenvolvessem o seu engenho e se tornassem quase semelhantes a deuses e por isso foi condenado. Apesar da tortura nunca se arrependeu! Nunca… até os seus irmãos e irmãs pedirem autorização a Zeus para o levarem a ver os resultados da sua acção:
Poseidon levantou o seu tridente e mostrou-lhe um mar de plástico a perder de vista, peixes, aves, belas e enormes tartarugas sufocadas em transparências mortíferas.
Depois, obrigou-o a banhar-se numa maré negra, onde a oleosa densidade petrolífera o teria feito sucumbir se não se tratasse de um deus imortal. Ferido no seu âmago Poseidon coxeava. De cada vez que se apoiava no seu tridente-bengala gerava um tsunami;
Gaia, moribunda, fez das tripas coração e mostrou-lhe as suas florestas devastadas, os seus polos derretidos, as imensas lixeiras a céu aberto, o fumo das fábricas, dos automóveis, dos incêndios. Cada estertor de Gaia era um terramoto, cada vómito um vulcão.
Os achaques de Poseidon e Gaia sacudiam Éolo, e a cada tropeço seu surgiam furacões e tufões.
“Onde estão eles, os mortais?”, perguntou Prometeu afogueado.
Palas Atena escondeu o rosto entre as mãos. “Nenhuma honra resta já”, disse a deusa guerreira; então Ares triunfante exclamou: “agora todos me louvam a mim!”
Ares o deus sedento de sangue, o deus da guerra selvagem e da matança personificada, orgulhosamente levou Prometeu por um braço. Mostrou-lhe todas as guerras do planeta, todas as armas humanas desde o princípio dos tempos, de pedras e cutelos, às armas de destruição maciça: biológicas, químicas, radiológicas e nucleares.
“E tudo isto o fogo gerou?”, perguntou Prometeu incrédulo, os olhos a saltarem-lhe das órbitras, um fio de voz na garganta. Uma dor imensa trespassava-o, uma dor infinitamente superior ao da sevícia a que tinha sido condenado. Os deuses seus irmãos perceberam-no e decidiram não o voltar a acorrentar ao rochedo. Silenciosos, viraram-lhe as costas deixando-o na amargura do seu arrependimento.
Caído nas margens do Olimpo Prometeu chorava e gemia, no seu pranto tinha perdido a noção do espaço em seu redor, não ouvia os sons, não sentia os cheiros. Por este motivo não se apercebeu que a fedorenta Penia, a pobreza, se aproximava sorrateira. Só se deu conta, de um salto, quando sentiu que Penia lhe remexia nos bolsos em busca de migalhas. A velha não se alarmou. Exibiu um sorriso desdentado e trocista. “Ainda não viste nada!”, disse Penia com desplante. E Prometeu num átimo de coragem retorquiu: “Mostra-me!”
Então Prometeu seguiu a velha Penia, pelo avesso do mundo, por ruelas estreitas, sombrias, e mal cheirosas. Ela mostrou-lhe a fome e a sede que não matam logo mas incham as barrigas de crianças inocentes. Mostrou-lhe também o envelhecimento, a doença, o sofrimento e a morte.
“Por que não usaram o fogo, catalisador da inteligência para curar tudo isto? Por que destruíram as florestas? Por que envenenaram os mares? Por que se matam uns aos outros? Por que preferiram a fealdade à beleza, o sofrimento ao prazer?”
Penia, a miséria, abriu a bocarra desdentada e soltou uma gargalhada horrenda e pestilencial: “No vosso orgulho, ó deuses, não percebesteis que os humanos me veneram a mim?!”
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de agosto)
(CM)