O algarvio Nelson Dias criou, no ano passado, o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos, um trabalho inédito que contou com a participação de 76 autores de 71 países e que está a ter repercussão em várias partes do mundo.
Nelson Dias é licenciado em Sociologia. “Após a licenciatura e alguns anos de experiência no mercado de trabalho, decidi tirar um mestrado na área do Planeamento e Avaliação de Políticas Públicas. Há cerca de 20 anos interessei-me sobre um tema que não era propriamente conhecido em Portugal, nomeadamente os Orçamentos Participativos”, começou por explicar, em entrevista ao POSTAL.
“Decidi fazer alguma pesquisa sobre o tema e acabei por estar fora do país durante um período. Quando regressei pensei que isto era algo que realmente fazia falta em Portugal. Isto, porque o processo de descentralização desenhou os nossos municípios para aproximar a administração pública das pessoas, mas não para promover a participação das pessoas na administração pública”, afirma.
Nelson Dias salienta que “no fundo era como se as pessoas fossem beneficiárias de um Estado assistencialista. O Estado pensado para assistir as pessoas e não para colocar as pessoas a pensar sobre o Estado e o desenho das políticas públicas. O país precisa de encarar os seus cidadãos de uma outra forma, como coprodutores das políticas. Isso seria um sinal de maturidade da nossa democracia e das nossas instituições”.
“Eu interessei-me muito por este tema e achei que fazia falta este tipo de instrumento em Portugal para as autarquias portuguesas”, explicou, salientando que começou a fazer “experimentações com municípios interessados”.
“Aconteceu em São Brás de Alportel e depois fora da região, com municípios de maior dimensão como é o caso de Lisboa e Cascais. Chegou a um ponto em que o trabalho começou a ser conhecido também fora do país, tendo recebido convites de algumas organizações para apoiar a implementação destes processos participativos fora de Portugal”, recorda.
O sociólogo trabalhou em Cabo Verde, enquanto consultor das Nações Unidas e do Governo desse país, e desde 2011 desempenha, regularmente, funções como consultor do Banco Mundial, para apoiar a implementação destes processos em algumas regiões do mundo, nomeadamente em Moçambique, no México e até mesmo na Rússia.
Em Moçambique apoiou diretamente a implementação de orçamentos participativos nas cidades de Maputo, Nampula e Quelimane e colaborou com a Associação Nacional de Municípios desse país na criação de uma estratégia nacional de governação municipal participada, algo inédito no contexto africano.
No México apoiou a criação de um processo pioneiro de orçamento participativo na cidade mineira de Cananea, no deserto de Sonora, junto à fronteira com os Estados Unidos. Essa iniciativa-piloto teve como objetivo alargar este processo, com as devidas adequações, aos cerca de duzentos municípios mineiros do país, transformando este processo numa política nacional.
“Todo este trabalho deu-me a perceção da importância que este tema tem vindo a ganhar a nível mundial e, então, fui criando uma rede de contactos, pessoas, colegas e amigos, e nesse âmbito decidi, em colaboração com colegas, criar o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos, um trabalho em rede, que envolveu a colaboração de 76 autores, de 71 países, de todos os continentes”, que conta com o apoio do Município de Cascais, revela.
Nelson Dias realça que “o atlas representa um trabalho sem precedentes, porque não há nenhum levantamento tão exaustivo como este, que tivesse sido feito a nível mundial, o que nos permitiu identificar mais de 11 mil casos de orçamentos participativos no mundo”.
O Atlas tem uma análise detalhada dos orçamentos participativos e vários mapas ilustrativos. “Este trabalho tem uma leitura das dinâmicas globais e tem fichas de cada país com dados concretos”, destaca.
O Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos foi lançado em outubro do ano passado em Cascais e está disponível na internet. O trabalho “teve de ser editado em inglês, para facilitar a sua disseminação, e o título é “The World Atlas of Participatory Budgeting”.
“Estamos neste momento a preparar a 2ª edição do Atlas, que será lançada em outubro próximo, e que trará muitas novidades. Para além da versão em papel, será também lançada a versão digital do Atlas, baseada numa página de internet, através da qual as pessoas poderão interagir com os mapas e os dados estatísticos alcançados”, revelou ao POSTAL.
Nelson Dias revela um pouco do seu percurso nos últimos dois anos
“Nos últimos dois anos estive ainda a trabalhar no extremo oriente da Rússia, mais precisamente na região insular da Sacalina, a cerca de 20 quilómetros do Japão, onde me convidaram para implementar um processo de orçamento participativo. Foi um desafio tremendo porque é um contexto político, social e cultural completamente diferente de todos os outros onde tinha trabalhado”, explica.
“O Orçamento Participativo que aí conseguimos implementar foi o primeiro na Federação Russa em que existiu uma votação pública aberta sobre dinheiro público. As pessoas puderam apresentar as suas propostas e decidir, através do seu voto, os projetos que queriam ver implementados com os cerca de 15 milhões de euros alocados pelo Governo da região, algo inédito no país”, afirma.
“A par disto, no ano passado, juntamente com outros colegas, apoiou a criação de uma organização, com sede em Faro, que se chama Oficina, vocacionada para desenvolver e apoiar projetos de promoção da participação dos cidadãos, bem como de planeamento e avaliação de políticas públicas”, salienta.
O sociólogo disse que neste âmbito “estão a ser feitos trabalhos com vários municípios da região e não só em áreas importantes, como é o caso da habitação”.
Nelson Dias destaca que “a região algarvia enfrenta, entre outros, dois problemas estruturais, nomeadamente uma crise demográfica, com uma perda continuada de população ao longo dos últimos anos e uma especulação muito acentuada dos preços da habitação”.
O sociólogo afirma que “a crise demográfica poderia ser pior se não se tivesse verificado o crescimento da população estrangeira, que após a crise internacional voltou a procurar Portugal e o Algarve, não apenas em busca de emprego mas também de uma boa qualidade de vida”.
Nelson Dias adianta que “emprego e habitação são as duas principais variáveis que determinam a decisão da maioria das pessoas quanto ao local que escolhem para viver. Se olharmos para o desemprego no Algarve, esse atingiu nos últimos dois anos valores bastante baixos, situação à qual não é alheia a perda populacional verificada, o que significa que a região precisa, em determinados momentos, de atrair pessoas de outras regiões para ocuparem postos de trabalho disponíveis”.
Esta situação “contrasta, por um lado, e choca, por outro, com o mercado de habitação, cujos preços continuam a crescer, tornando difícil o acesso à compra ou arrendamento para muitas famílias, pelo menos em condições dignas”. Num país que teve cerca de uma década sem investir dinheiros públicos na provisão de habitação, perante um mercado bastante desregulado, este é o momento de inúmeros desafios e os municípios assumem neste particular um papel muito relevante”, adianta.
“O Algarve é das regiões do país com a habitação mais cara. A política de habitação não é apenas uma responsabilidade do Estado Central e há muito trabalho que os municípios podem e devem fazer”, afirma.
Como o Postal já revelou em outras ocasiões, grande parte do trabalho de Nelson Dias, nos últimos anos, tem sido desenvolvido noutras regiões do país e do estrangeiro. Também neste âmbito, tem vindo a colaborar com a Câmara Municipal de Lisboa no desenho e na avaliação de instrumentos de política pública dirigidas aos bairros e zonas de intervenção prioritária da capital portuguesa.
Nos últimos meses tem dedicado parte do seu tempo a apoiar a criação de um programa de apoio ao desenvolvimento local destas comunidades, algo que será apresentado em breve pelo município.
Perto de Lisboa, mais precisamente em Cascais, tem vindo a trabalhar com a autarquia na consolidação do seu Orçamento Participativo, mas também na conceção e no desenvolvimento de outros processos participativos nas áreas da Saúde e da Educação, envolvendo os cidadãos no desenho de políticas públicas.
O mestre em Planeamento e Avaliação de Políticas Públicas revelou ainda que está implicado em outros projetos e desafios. Espera, por exemplo, até ao final do primeiro trimestre deste ano estabelecer acordos com organizações representativas de municípios de países de três continentes, para estreitar laços de cooperação com Portugal sobre políticas municipais inovadoras.
Neste âmbito está inclusive a preparar visitas ao nosso país por parte dessas delegações municipalistas. Em conjunto com colegas está também empenhado em alargar os processos participativos ao mundo das empresas.
Considera que essas “podem ter um papel importante no desenvolvimento de uma cultura democrática, implicando os seus funcionários em matérias relacionadas com a vida interna ou alocando parte dos seus lucros a projetos dedicados às comunidades onde se inserem”.
Nelson Dias adianta que “são hoje conhecidos vários exemplos de sucesso que podem servir de inspiração para as empresas portuguesas”.
Recentemente chegado da Ucrânia, onde foi apresentar o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos, Nelson revelou ainda ao Postal que nos próximos meses deslocar-se-á a países como a Geórgia, o Brasil e o Perú para a realização de conferências e aproveitar para estreitar os laços de cooperação com Portugal.
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