Tudo está em constante mudança e por estes dias em que houve restrições às visitas aos cemitérios fica o silêncio, o visitar interiormente essa força evocativa e simbólica que nos liga aos entes queridos.
Os nossos mortos estão vivos nos nossos corações e não naqueles túmulos vazios, onde existe apenas pó. Em vez de ir ao cemitério costumo abraçar as árvores que o meu pai plantou e das quais se despediu antes de morrer. Continua a ser a minha inspiração, o tronco e eu apenas um ramo.
Na página de agradecimentos da tese de mestrado escrevi: “Ao meu pai que nunca verá este trabalho, mas que me ensinou a ver a Serra com um olhar de contemplação e respeito.
À minha irmã e à mãe pela dedicação e generosidade. À Cláudia Diogo pela colaboração e sugestões pertinentes.”
Ainda não há um mês que a Cláudia partiu, tinha 53 anos e tanto para dar (vítima de doença oncológica como o meu pai).
Demos aulas às mesmas turmas do curso de Sociologia no ISMAT em Portimão, estávamos ambas a fazer a tese de mestrado em Lisboa. A Cláudia Diogo e eu tínhamos o gosto pela Serra, pelas tradições, memórias e oralidade. Defendi a tese de mestrado em Ecologia Humana e Problemas Sociais Contemporâneos em 2002 e a Cláudia a tese de mestrado em História em 2003.
Apoiamo-nos mutuamente, chegamos a andar pela Serra de Monchique a fazer recolha junto de pessoas idosas. A Cláudia referiu no livro que publicou em 2015, baseado na sua tese, e com apoio da Dir. Regional de Cultura do Algarve, algumas situações curiosas que passamos, para além de incluir a minha tese na bibliografia.
Entretanto passei a dar aulas na Universidade do Algarve e só nos voltamos a encontrar anos depois na apresentação do livro em Faro.
Reli a dedicatória que me escreveu e emocionei-me. A melhor homenagem que posso prestar à investigadora Cláudia Diogo é continuar o trabalho de recolha das tradições e preservação da memória, que comecei na Serra de Monchique e dei continuidade na Serra do Caldeirão até Alcoutim.
Quando parece que tudo acaba é quando tudo começa
Diariamente leio um trecho da Bíblia escolhido aleatoriamente, para além do Evangelho do dia. Uma das frases da semana foi esta: “Vale mais o bom nome do que o melhor dos perfumes, vale mais o dia da morte do que o dia do nascimento”. Eclesiastes 7,1
Creio que a maioria das pessoas pensa mais em como será o dia da sua morte, do que em como foi o dia do seu nascimento. Aquele será o dia da grande passagem para o Infinito, depois de todas as vivências que fizeram a nossa história pessoal.
Quando se está presente no último momento de alguém percebe-se que quando parece que tudo acaba é quando tudo começa…
É um momento que, como cristã, vejo com júbilo porque é a grande passagem para o abraço de Deus, esse abraço que, imagino, nos acolherá com a ternura infinita de Pai. Daí ser tão importante a fé em algo superior a nós, seja qual for a religião ou filosofia de vida.
E a poesia…essa companheira de vida permite-nos também outro entendimento…
Como diz o poeta de língua alemã, Rainer Maria Rilke, “(…) somos apenas a casca e a folha. A grande morte, que cada um traz em si, é o fruto à volta do qual tudo gira.”
Os livros fazem parte da vida e ajudam a ver a morte com um outro olhar. Os que estava a ler ao lado do meu pai na fase final da sua vida, juntamente com a fé, foram o apoio para ter mais coragem para enfrentar um momento tão único.
Sim, foi doloroso, mas a beleza e profundidade dos nossos diálogos e de termos pensado juntos como seria esse momento (embora nunca se esteja totalmente preparado) foi o mais triste e mais memorável que me aconteceu.
Estar ao lado, ser presença total e dar o abraço final, depois de ter dado o sumo de laranja das nossas árvores, como se estas agradecessem à sua maneira os cuidados e dedicação do meu pai.
Nesse golo derradeiro…o abraço apertado…e a morte a me pôr à prova…por instantes, também eu quis morrer envolta naquele abraço.
A morte passou a fazer parte do meu itinerário pessoal. A morte tornou-se um tema de vida e de reflexão.
Há um território interior feito de adiamentos e de silêncios que obriga a olhar mais profundamente para dentro e para o Alto.
Quem morre de doença oncológica por vezes tem uma lucidez que parece escolher o simbolismo do dia e da hora. Há momentos humana e espiritualmente tão marcantes que transformam a nossa caminhada.
Essa proximidade com a morte deu-me força para enfrentar outras situações em que assisti a momentos finais. E fez-me perceber uma vocação espiritual e a missão de colocar a vida ao serviço dos outros, principalmente dos mais velhos e vulneráveis.
Os poemas que escrevia iam sublimando a dor e das leituras dessa altura, em que permaneci ao lado do meu pai, partilho esta frase do teólogo e escritor Teilhard de Chardin:
“Não somos seres humanos a viver uma experiência espiritual, somos seres espirituais a viver uma experiência humana”.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de novembro)