Se fosse hoje, abriria os telejonais como enviado especial em direto no teatro das operações militares que decorriam a sul do território ocupado pelos muçulmanos.
O cronista, que seguia a bordo da terceira cruzada com destino à Terra Santa, foi o repórter de guerra que relatou na primeira pessoa, num estilo direto e em liguagem simples, tudo o que viu naquele ano de 1189.
Num manuscrito de oito páginas, que ficou conhecido como “Crónica do Cruzado Anónimo”, começa ele por evocar os gritos de morte que ainda pairavam no ar, da carnificina bárbara perpetrada 15 dias antes por uma outra expedição de cruzados sobre a fortaleza árabe de Alvor.
Uma investida em que foram passados a fio de espada, como ele afirma, “perto de 5.600 pessoas, não perdoando a sexo nem idade”. Não escapou ninguém.
Porém, para D. Sancho I, de Portugal – que não terá participado na chacina -, esta investida não representara senão um primeiro ensaio para a operação seguinte com outro alcance e envergadura: o assalto e tomada da opulenta, populosa, culta e rica cidade de Silves. A grande e afamada capital do reino do Algarve Andaluz, considerada a Bagdad do ocidente. Segundo o cronista – porventura com algum exagero -, mais rica e populosa do que Lisboa e outras cidades como Santarém ou Coimbra.
A nova frota de 36 navios e 3.500 homens de guerra, composta por soldados ingleses, teutónicos e flamengos, levando como objectivo a libertação da Terra Santa de Jerusalém, na posse de Saladino, sultão do Egipto, tinha acabado de fazer uma paragem de reabastecimento em Lisboa. E foi nesta paragem na capital do reino, que D. Sancho aliciou e convenceu essa força mercenária a fazer um desvio e ajudá-lo a tomar de assalto a opulenta praça de Silves.
Num desses navios seguia aquele soldado mais dado às armas da escrita do que às armas da guerra. Um cronista com a missão de contar os pormenores da expedição militar a Jerusalém, a qual, por interesses e contrapartidas de oportunidade – mais económicas do que religiosas -, se via a caminho de uma missão de auxílio ao rei português na sua política de expansão territorial para sul.
Conta ele que D. Sancho fez seguir por terra uma força militar bem equipada com material de guerra e de assalto, com o objectivo estratégico de dar apoio aos cruzados por um dos flancos de combate. O contigente lusitano acampou a cerca de quatro milhas da cidade, enquanto a frota, a que se juntaram muitas naus portuguesas e uma outra da Galiza, zarpando de Lisboa, navegou sem grandes pressas até ao estuário do Arade, defronte a Portimão. Antes, os cruzados haviam passado junto à localidade de Alvor onde puderam constatar a devastação e os estragos da matança sangrenta ocorrida duas semanas atrás.
Navegando já rio acima a partir de Portimão, avistaram Silves cujos campos em redor encontraram desertos. Os seus habitantes, apercebendo-se da aproximação rápida da esquadra inimiga e tendo presentes os acontecimentos de Alvor, fugiram procurando refúgio e proteção dentro das muralhas que circundavam a cidade. Despovoados, os arredores transformaram-se num campo aberto sem resistência à pilhagem e ao saque para esses homens que falavam em nome de Deus e levavam a cruz de Cristo ao peito.
Silves era por essa época, uma praça com um forte dispositivo de defesa, cercada por altas torres, fossos e quatro níveis de fortificações, dentro das quais se encontrava a almedina e uma cidade de casas apalaçadas. Os acessos eram quase impenetráveis e as entradas pelas portas feitas em ângulos apertados e tortuosos, o que dificultava ainda mais a passagem.
Era uma fortaleza quase inexpugnável, como a descreve o cronista: “uma vasta cidade estendida no vale” e outra parte “pelo monte e chamava-se almedina”.Correm por ali – refere ele – “dois rios (Arade e Odelouca), havendo sobre o canal quatro torres, pelas quais passava o abastecimento de água ao burgo”.
O cronista põe ainda em evidência o castelo e uma grande torre no vale, de onde seguia uma estrada coberta para a cidade, “de sorte que não se podia ver o que se passava de fora dos muros da dita almedina”.
No dia 22 de julho, uma vez estudado o sistema defensivo da fortaleza, iniciaram-se os combates. No calendário cristão, era dia de Sta Maria Madalena.
Nos primeiros ataques, os cruzados tentam passar as barreiras com múltiplas tentativas de escaladas, ao mesmo tempo que iam escavando minas e túneis para enfraquecer e romper as muralhas. Respondem os árabes com o arremesso de pedras e líquidos a ferver, rechaçando-os. Vive-se uma situação de parada e resposta que dura mais de uma semana, sucedendo-se combates encarniçados com inúmeras baixas de ambos os lados, até surgir um acontecimento que perturbou os cruzados. Em represália à morte de um mouro na porta da mesquita, os muçulmanos que haviam capturado três cristãos, penduraram-nos pelos pés no cimo da muralha para que servissem de exemplo. Ali, impiedosa e lentamente, foram mortos a golpes de lança e espada, para gáudio da população sitiada.
Relata o repórter, que no dia 6 de agosto os cristãos resolveram experimentar uma nova arma, na tentativa desesperada de derrubar as muralhas defensivas da cidade: “No domingo, dia de S. Felicíssimo e Agapito, nós os Teutónicos, logo de madrugada assentámos uma máquina, a que chamamos ouriço, contra o muro da coiraça, entre duas torres, com intento de lhe abrir brecha”.
A utilização desta máquina não deu, porém, os resultados esperados, dado que os muçulmanos deitaram fogo à mesma, inutilizando-a. Vieram, entretanto, outras máquinas de guerra do rei de Portugal, o que levantou a moral das tropas quando já havia sinais de impotência em face da resistência oferecida pelos árabes.
Com efeito, o desânimo e a hesitação começaram a apoderar-se dos cruzados com pressa de arrumar a questão para rumarem ao seu destino. Até o monarca português, perante a tenacidade dos mouros, admitiu desistir e levantar o cerco.
Mas a 14 de agosto surgiu o primeiro sinal de fraqueza do lado de dentro: um muçulmano lançou-se do muro da fortaleza abaixo, a seguir a outros. Eram sinais de rendição. Sedento de água, informou que “na cidade morria muita gente à sede; porque nos poços havia pouca água e essa era salobra em demasia”.
Mas foi preciso atravessar todo o mês de agosto, até chegar o dia esperado: a 1 de setembro, dia de Santo Egídio, os mouros anunciaram, finalmente, que estavam dispostos a render-se, pondo-se “a bradar do muro pela gente d’El Rei para tratar de entregar a cidade”.
A partir de então, começaram as negociações – que terão sido muito mais difíceis entre D. Sancho e os cruzados do que com os árabes. Primeiramente, o monarca português procurou que os cruzados deixassem sair os mouros com os seus haveres, proposta que os primeiros recusaram. Prometeu dez mil cruzados de ouro que depois elevou para o dobro que foram também rejeitados. Perante a dificuldade de um acordo, ficou acertado que os mouros sairiam da fortaleza ”somente com o que tivessem vestido, ficando El Rei com a cidade e nós com o despojo que tivesse dentro”.
Acertadas as condições, a rendição consumou-se efetivamente no dia 3 de setembro. A resistência durara 43 dias.
Escreveu o cronista: “No terceiro dia das nonas de setembro saiu da cidade o alcaide chamado Albainus, só a cavalo, acompanhado de todos os demais a pé”.Mas contra tudo o que havia sido acordado, o comportamento dos cristãos não escapou à censura do rei e do repórter.
“A nossa gente miúda, porém, descarada e vergonhosamente, começou a roubá-los com quebra de convenção e a maltratá-los com pancadas do que ele o Rei se agastou muito”, sublinhou o cronista adiantado que, confrontado com esta situação de excessos, D. Sancho tomou uma decisão radical:
“Entregamos-lhe (ao rei de Portugal) a cidade, ainda recheada de riquezas, para que fizesse a partilha connosco, como cumpria à majestade real, havendo respeito assim ao trabalho, como ao dano que havíamos sofrido. El Rei, porém, tomando tudo para si, nada nos deixou, e por isso os cruzados, tratados tão injuriosamente se separaram dele menos amigos do que dantes estavam”- refere o escriba.
Obtida a conquista de tão importante praça, mandou D. Sancho purificar a mesquita maior e convertê-la em Igreja cristã.E, a 7 de setembro, véspera da Natividade de Nossa Senhora, logo foi designado D. Nicolau, bispo de Silves.
Após a rendição, o alcaide árabe, Albainus – filho de Ibn Wazir, de Évora, antigo companheiro de Ibn Qasi -, é poupado e segue para o exílio em Sevilha. Regressaria dois anos volvidos, integrado nas tropas de Yacube Almançor. Silves cairia de novo na posse dos mouros e a Sé cristã voltou a ser mesquita árabe outra vez.
A capital do Garb al-Andaluz só tornaria definitivamente à coroa portuguesa em 1243.
Fontes: “Cidade de Silves num itinerário naval do século XII por um cruzado anónimo”, M. Cadafaz de Matos – C.M.Silves; outras