«Naquela manhã, ao acordar, Jim Sams, esperto, mas algo leviano, depois de uma noite cheia de sonhos perturbadores, viu-se transformado numa criatura gigantesca.» (p. 11)
Nas primeiras frases de A Barata, de Ian McEwan, publicado pela Gradiva, um texto breve como uma novela que parece responder aos mais recentes acontecimentos de um Reino Unido que decidiu apartar-se da União Europeia, é possível reconhecer o início de A Metamorfose, de Kafka. E, para que não restem dúvidas, Jim Sams, o nome do protagonista, faz eco do de Gregor Sams. Mas se a obra de Kafka se caracteriza pela alegoria que faz uso do fantástico, em A Barata impera uma sátira em que tudo é inversão, numa espécie de parábola que pretende ilustrar como o mundo está de pernas para o ar – um pouco como Jim Sams se sente quando acorda, deitado de costas durante um bom tempo, enquanto contempla horrorizado os únicos quatro membros que lhe restam e sente saudades das suas perninhas castanhas. Conforme se vai familiarizando com a sua nova e repugnante aparência humana, sempre a partir da sua perspectiva de barata (capaz de lembrar ainda o gosto das moscas varejeiras), Jim Sams vai recordando fragmentos daquela que é a causa, a missão, que o trouxe do mundo dos insectos e, além dele, outros mais, com que o primeiro-ministro se vai cruzando e que consegue reconhecer de forma algo instintiva.
«Foi durante esses segundos, enquanto fitava o olhar brando de Trevor Gott, o chanceler do ducado de Lancaster, depois o ministro da Administração Interna, o procurador-geral, o líder da bancada, o ministro dos Transportes, o ministro sem pasta, que, num momento surpreendente de reconhecimento instantâneo, uma alegria inusitada, transformadora, transcendente, percorreu todo o seu corpo, passando pelo coração e descendo pela espinha. (…) Praticamente todos os membros do seu Conselho de Ministros partilhavam as suas convicções. Mas, muito mais importante do que isso, e só nesse momento o soubera, partilhavam as suas origens.» (p. 30)
O que estes insectos recentemente convertidos em políticos, de modo a cumprir uma missão em nome do povo, procuram decidir não é o Brexit, mas sim o florescimento de uma economia regressista e que deve ser implementada já no dia 25 de Dezembro, dia em que o comércio está fechado. O autor detém-se com algum cuidado na teoria do regressismo (a ideia não é totalmente nova), procurando explicá-la desde as suas origens, sendo que este consiste na inversão do fluxo do dinheiro. Em suma, a economia será estimulada com o cunho de mais moeda para que as lojas possam pagar aos seus clientes, e os clientes possam pagar pelos seus empregos, da mesma forma que os funcionários pagam um salário para que lhes seja permitido trabalhar, e quanto mais investirem em formação melhor, pois permitir-lhe-á encontrar um trabalho mais dispendioso, pelo que mais compras terá de fazer para o pagar. A lei passa portanto a proibir a acumulação de poupanças, pois o dinheiro parado vence elevadas taxas de juro negativas, o que o reduzirá a nada, obrigando portanto as pessoas a investirem o seu tempo em lojas onde são generosamente compensadas por todos os artigos que conseguirem levar a preço de retalho.
A certa altura a chanceler alemã – que tal como o presidente francês (Sylvan Larousse) ou o presidente americano (Archie Tupper) também passa por esta sátira – pergunta a James Sams «Warum?» (Porquê?), ao que a única resposta possível é «porque sim» (p. 97).
Na narrativa de Ian McEwan esta tese de inversão do que é a ordem natural das coisas afigura-se como a verdadeira crítica a um país que está empenhado em se destruir, vogando contra a corrente mas determinado a servir o seu povo. O livro parece perder um pouco da sua irreverência e ímpeto iniciais, mas a ironia cáustica de Ian McEwan permanece incisiva numa história que se quer com final feliz: «Agora, a Grã-Bretanha estava entregue a si própria. O povo tinha falado. A genialidade do líder do nosso partido permitira o cumprimento do desejo do povo. O destino do povo estava nas mãos do povo. O regressismo tinha sido cumprido! Sem mais hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha estava sozinha!» (p. 106)