“‘Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha também da Árvore da Vida, e coma e viva para sempre!’ E Iahweh Deus o expulsou do Jardim do Éden para cultivar o solo de onde fora tirado. Ele baniu o homem e colocou, diante do Jardim do Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da Árvore a Vida.”
Genesis, 3.
Por que sofremos? Como podemos diminuir, apaziguar ou mesmo erradicar o sofrimento? A história da queda do Paraíso apresenta uma explicação mitológica para a origem do sofrimento humano. Sofremos por culpa nossa: desobedecemos a Deus nas suas tentativas de nos proteger dos tormentos e por isso caímos. A partir da queda o mundo transforma-se num lugar de suplício.
Para a filósofa australiana Freya Mathews (1949 -) o Jardim do Éden representa um estado primordial de inconsciência da mortalidade humana e das múltiplas possibilidades de dor. No Paraíso não há passado nem futuro, nem sensação de vulnerabilidade, nem medo ou pavor. Há, pelo contrário, confiança absoluta, abertura total para um mundo em que toda a vida é experienciada como estando em paz.
Como ocorreu a transição deste estado de unidade primordial e plenitude passiva para o estado de fractura, luta e defesa que caracteriza a existência individual? Essa transição é retratada, no livro do Génesis, como uma queda seguida de exílio que acontecem na sequência de uma série de escolhas articuladas:
1. A escolha de Deus de não permitir que Adão e Eva comam da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal;
2. A escolha de Eva e de Adão de comer desta Árvore;
3. A escolha de Deus de proibir Adão e Eva, uma vez adquirido o conhecimento do bem e do mal, de comer de uma certa outra Árvore, que também cresce no Jardim: a Árvore da Vida.
Segundo Mathews, ao comer da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal a descoberta da nossa própria subjetividade é vivenciada como uma nudez diante do outro porque antes éramos invisíveis para nós próprios. Agíamos sem reflexão como se as nossas ações e sentimentos fossem parte do fluxo inevitável do mundo. Seguindo a interpretação da filósofa, não é a nudez do corpo que nos envergonha, mas sim o reconhecimento da nossa anterior falta de autodomínio e incapacidade de dirigir a nossa própria experiência e de nos responsabilizarmos por ela. Sentimos vergonha de como éramos antes. Começamos a tapar-nos para “tomar posse” de nós próprios e passamos a revelar aos outros apenas quanto desejamos divulgar. Eu diria que assistimos ao nascimento da intimidade. Essa interioridade que cada indivíduo alberga dentro de si e que só a si cabe decidir quando e como partilhar.
Segundo Mathews a descoberta da nossa nudez é também a descoberta da possibilidade de sofrimento e, portanto, da possibilidade de julgamento ou avaliação. Assim que compreendo que sou um indivíduo separado, com necessidades e desejos próprios percebo, concomitantemente, a minha susceptibilidade a uma série devastadora de frustrações, perdas e aflições. Ao aperceber-me da minha vulnerabilidade, começo a julgar o que está diante de mim: a realidade divide-se em partes boas ― as que são compatíveis com os meus interesses vitais ― e partes más que os ameaçam.
Dividir a realidade desta forma é, naturalmente, ser banido do Jardim, pois o jardim é a aceitação do eu indiferenciado e do mundo inteiro, sem julgamento ou avaliação, imperturbados pela ansiedade ou o medo. Numa palavra eu diria que no Jardim do Éden se vive em equanimidade.
Pelo contrário, ao comerem o fruto da Árvore do Bem e do Mal a consciência da possibilidade de sofrimento tornou-se omnipresente. A ansiedade e o pavor que acompanham a consciência da possibilidade de sofrimento constituem o sofrimento psicológico.
A partir da queda o modo de vida humano consiste em evitar o sofrimento. Para tal fazemos o máximo para obter o controlo dos acontecimentos e dos outros, tanto para nos absolvermos da culpa como para garantir a nossa própria segurança e bem-estar. Um instrumento primordial nesta empreitada é, obviamente, o conhecimento. Através do conhecimento descobrimos e ajustamos os mecanismos subjacentes às “aparências”, a fim de manipular o curso dos acontecimentos com o propósito de salvaguardar os nossos interesses individuais e colectivos. Mesmo ao nível da teoria, o conhecimento faz com que o mundo pareça mais seguro para nós, ao remover o mistério enervante das coisas e abolir a sua imprevisibilidade, para que possamos estar, pelo menos psicologicamente, preparados para quaisquer contingências que não possamos evitar.
Ao procurarmos os mecanismos subjacentes às aparências, contudo, rapidamente perdemos de vista a unidade viva do mundo, o facto de as aparências, lidas poeticamente, também poderem fornecer uma indicação da dimensão interior ou subjectiva das coisas. Mas ao barrar o nosso acesso à Árvore da Vida, o Deus hebreu proíbe-nos de escolher este caminho.
Numa interpretação deveras original, Mathews considera que a Árvore da Vida poderia significar Eros: no encontro erótico, as subjetividades surgem com a carga que flui da experiência do contacto directo com o outro. ― Muito diferente daquela da imersão, dir-se-ia amniótica, representada pelo estado original pré-Árvore do Conhecimento.
A bem-aventurança do Jardim do Éden tem um caráter passivo, bastante em desacordo com Eros. É o êxtase do indiviso, de quem flutua no seio da vida, livre da tensão de ter que patrulhar os limites de um eu individual.
Eros, pelo contrário, é força vital. Como Eros é função do encontro, ele pressupõe individuação: os sujeitos só se conectam entre si se eles já foram, ou estão em processo de ser, diferenciados. A energia que resulta do encontro é a energia da excitação, da ativação, da potencialização. Através do contacto com o outro, o sujeito individual desperta para sua própria existência, e sente alegria nisso.
Este estado de vitalidade é consistente com a consciência do sofrimento.
A Árvore da Vida, entendida como uma indicação da possibilidade de uma atitude erótica em relação à realidade, contradiz os pressupostos psicológicos em que se baseia a história do Éden. Pois adotar uma atitude erótica em relação à realidade é permitir que o desejo de alguém seja pelos outros e não meramente pela própria auto-preservação. Quem segue o caminho de Eros encontra a realização através do encontro, o contacto com o outro é o que há de mais gratificante. Devido a este desejo de encontro, quem comeu o fruto da Árvore da Vida está preparado para arriscar, tolera a sua vulnerabilidade porque o encontro com o outro é um bem maior, que ultrapassa os receios.
Pelo contrário, o desejo fundamental do eu individualizado, traumatizado pela descoberta da sua vulnerabilidade e mortalidade é a sua própria segurança. Segundo Mathews, ao bloquear o caminho para a Árvore da Vida o criador ordena que nos comprometamos, antes de mais nada, connosco próprios: que trabalhemos para nosso sustento em vez de confiar na generosidade da natureza; que reprimamos em vez de aceder ao convite ameaçador de nossos sentidos; que subordinemos os outros à nossa vontade, em vez de permitir que nossa nudez floresça sob o olhar de um outro. O mundo é percebido como um clássico vale de lágrimas, e alcançamos a nossa humanidade respondendo a isto de forma racional, instituindo uma regra de direito moral que, embora repressiva, nos permite lidar colectivamente e de forma digna com os perigos que nos ameaçam. A queda na individuação e na autoconsciência é, deste modo, uma perda da alegria e da energia da vida, um sacrifício de Eros.
Recuperar o Paraíso é estar calmo, não energizado: o amor místico pacifica. Pelo contrário, Eros electriza! O encontro com o outro renova a nossa sensação de estar vivo. Eros é uma força criativa, fonte de energia que nos faz mergulhar no tecido poético da realidade. Aprendemos a seguir as suas pistas, a reconhecer os seus sinais, de encontro em encontro, nutrindo-nos do fruto da Árvore da Vida.
Café Filosófico: A Árvore da Vida | 21 de Setembro | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira
5€ inclui água aromatizada / cálice de vinho | Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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