Daphne du Maurier nasceu em Londres, em 1907, no seio de uma família de artistas e intelectuais. Filha de actores e neta de escritor, revelou-se desde tenra idade, não só uma leitora voraz, mas também possuidora de uma imaginação fértil. Começou a escrever artigos e contos em 1928 e publicou o seu primeiro romance, The Loving Spirit, em 1931. Foi no entanto Rebecca, o seu quinto romance, que a popularizou. Ao longo da sua carreira, continuou a escrever contos e escreveu igualmente peças e biografias.
Rebecca foi em boa hora relançado pela Editorial Presença, que publicou ainda outras obras da autora, como A Pousada da Jamaica e A Minha Prima Rachel.
A Minha Prima Rachel inicia quando Philip se recorda com nitidez de um momento da sua infância em que viu um homem de grilhetas enforcado nos Quatro Caminhos.
Philip sabe bem que «não se pode voltar atrás» mas é a partir dessa estranha lembrança que nos conduz pela história de como perdeu o seu pai adoptivo e encontrou a sua prima Rachel.
«Na vida não se pode voltar atrás. Não há recuo. Não há segunda oportunidade. Aqui sentado, vivo e na minha própria casa, é-me tão impossível retirar uma palavra proferida ou desfazer um ato realizado como o era ao pobre Tom Jenkyn a oscilar nas suas grilhetas.» (p. 13)
Passaram-se dezoito anos, e entretanto Philip tem vinte e cinco, mas é a partir da recordação nítida desse homem suspenso, com o rosto e o corpo cobertos de alcatrão, que se espoletam as memórias que constroem o fio da narrativa.
«O rapaz que estava debaixo da janela dela na véspera do seu aniversário, o rapaz que permaneceu à entrada da porta do quarto dela na noite da sua chegada, desapareceu, tal como desapareceu a criança que atirou uma pedra a um homem morto num patíbulo para criar uma falsa coragem.» (p. 13)
Quase como se um condenado à morte por ter morto a mulher estivesse na mesma condição humana de um desgraçado que se apaixona pela mulher errada. Como lhe vaticina o seu padrinho: «Há mulheres, Philip, boas mulheres, muito possivelmente, que, sem que a culpa seja sua, atraem a fatalidade. Tudo o que tocam se transforma em tragédia. Não sei porque te digo isto, mas sinto que devo dizê-lo» (p. 13).
Philip é criado pelo seu primo Ambrose, após a morte dos seus pais quando ele tinha cerca de dezoito meses, altura em que se muda para o solar do primo onde é criado inicialmente por uma ama que acaba por ser despedida quando esta dá umas palmadas no rabo de Philip, então com três anos, altura em que Ambrose toma definitivamente a seu cargo a educação e a criação da criança, começando por lhe ensinar o alfabeto usando a letra inicial de todos os palavrões.
Philip considera que ele era como o seu primo Ambrose: «dois sonhadores, pouco práticos, reservados, cheios de grandes teorias nunca postas à prova, e, como todos os sonhadores, adormecidos para o mundo real» (p. 12).
Narrativa que alia a tensão ao misterioso
Aliada à narração na primeira pessoa (patente logo no pronome possessivo «minha» do título), e sempre imersos no sentir e pensar da personagem, para melhor nos identificarmos com os devaneios amorosos de Philip à medida que o seu sentimento pela prima Rachel, viúva do seu recentemente falecido primo Ambrose, passa do ódio e do desejo de vingança ao amor cego, temos uma escrita literária muito próxima de um registo cinematográfico, até pela qualidade visual das descrições que a autora fornece e da aura de mistério e de fantasmagoria que adensa a intriga. Philip, por exemplo, pode ser visto como um duplo ou uma reencarnação do seu primo Ambrose, até pela grande parecença física de ambos: «Parecia-me que Ambrose se encontrava a meu lado e eu revivia nele, ou ele em mim» (p. 328).
O romance não mantém a tensão com a mestria conseguida em obras como Rebecca mas há, como sempre, um grande cuidado na descrição que nos transporta completamente para uma ambiência sombria e misteriosa, até que se chega a um desfecho quase cinematográfico de tão súbito, inesperado – ainda que subtilmente indiciado –, e magistralmente narrado, de modo a que no final da leitura fiquemos sem saber até que ponto existe culpa por parte do protagonista.
Apesar de o próprio Philip apenas descobrir a verdade no Dia das Mentiras, dia do seu aniversário e data em que se precipitam de forma drástica as decisões que ele próprio tomou e colocou em marcha, a revelação final é quase sempre claramente adivinhada pelo leitor, pois a autora deixa lampejos da verdade nas entrelinhas, ainda que o leitor corra o risco de ficar embalado pela intensidade dos sentimentos de Philip, ao filtrar tudo pela consciência desse narrador na primeira pessoa: «O meu professor do quinto ano, em Harrow, dissera-nos uma vez que a verdade era algo intangível, invisível, em que tropeçávamos às vezes sem a reconhecer, mas que é descoberta, assimilada e compreendida apenas pelos idosos perto da sua morte ou, às vezes, por seres muito jovens e muito puros» (p. 283).
Uma constante do romance é também a questão da diferença entre a natureza de ser homem e a condição de ser mulher. No momento em que Philip se prepara para conhecer a sua prima Rachel, a sua educação é apontada como tendo a grave lacuna de este jovem nunca ter convivido realmente de perto com as mulheres: «Devia ter havido alguém na casa, uma governanta, uma parente afastada, qualquer pessoa. Cresceste na ignorância total das mulheres e, se vieres a casar-te, a situação poderá ser difícil para a tua esposa» (p.64). É irónico, aliás, como a certa altura se afirma: «as mulheres, especialmente Rachel, agem segundo as suas emoções. Nós homens, em geral, embora não sempre, agimos segundo a razão.» (p. 319).
Primeiramente adjectivada de aranha e de víbora pelo seu primo Philip, o véu de mistério em torno de Rachel, à semelhança dos xales que ela usa, é de tal ordem que a personagem apenas ‘entra em cena’ na página 84, e fá-lo primeiro com uma «voz baixa, quase inaudível», imersa em escuridão. Só gradualmente a personagem se vai desvelando mais e mais, até que Philip se toma completamente de amores pela prima, a começar pelo seu humor inesperado apesar do seu constante trajar de negro enlutado. Para Rachel, aliás, enquanto viúva, parece haver muito pouca esperança: «– As viúvas? – respondi eu, sem refletir. – Oh, as viúvas voltam a casar-se o mais depressa possível, ou vendem os anéis» (p. 134).
Regresso a Manderley
Reler um romance como Rebecca agora finalmente reeditado tem o condão de fazer ressurgir lembranças bem vívidas, como a ingénua protagonista sem nome, a sinistra Mrs. Danvers, e o emblemático final em que a sugestão paira no ar como um clarão distante, ao mesmo tempo que se faz a leitura de todo um novo livro que desconhecíamos por completo e que merece justamente ser revisitado, como quem regressa a Manderley.
Os pressentimentos e maus presságios conferem um ambiente fantástico ao romance, que se afasta do melodrama romântico para se aproximar mais de um universo próximo do que hoje se designa como thriller psicológico ou misterioso, em que a eterna inominada e jovem heroína, Mrs. de Winter, segunda esposa de Maximilian de Winter e sucessora de Rebecca, tenta juntar as peças desse enigma chamado Rebecca para poder compreender o comportamento do seu enigmático e por vezes irascível marido, o ódio da governanta que se move como uma sombra a dominar a casa, ao mesmo tempo que tenta lutar contra o fantasma omnipresente da sua antecessora, senhora da mansão de Manderley, que parece capaz de devorar tudo e todos, inclusivamente a sua própria identidade.
Originalmente publicado em 1938, Rebecca conheceu inúmeras reedições e Alfred Hitchcock adaptou-o ao cinema em 1940, tendo sido vencedor de dois Óscares.
Muitos dos romances de Daphne du Maurier tornaram-se bestsellers e inspiraram filmes de grande sucesso. A Minha Prima Rachel conheceu uma adaptação para mini-série televisiva em 1983 com Geraldine Chaplin, e duas versões para cinema, em 1952, com Olivia de Havilland e Richard Burton, com quatro nomeações para os Óscares, e em 2017 com Rachel Weisz.
Daphne du Maurier viveu a maior parte da sua vida na Cornualha, cenário de grande parte dos seus livros. À medida que a obra literária de Daphne du Maurier lhe conferiu fama à escala mundial, a escritora foi-se tornando mais solitária, acabando por se afastar do mundo que a rodeava.
(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Dezembro)