No dia 25 de Novembro celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Em conversa com a minha filha de três anos, fiquei a perceber que ela (ainda) não conhece o conceito de violência. No entanto, não sei se fruto ou não do acaso, referiu-se a um “jogo do silêncio”. Sem compreender plenamente o sentido daquilo que dizia, acabou por dar uma reposta que me deixou a refletir e me recordou a recente campanha da CIG (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género)#NemMais1MinutoDeSilêncio.
Mas um dia no tempo estou convencida de que a pergunta da minha filha (como muitas outras) irá chegar. E nesse dia, como lhe irei eu explicar o que é a violência e a violência doméstica, como é que nos nossos dias este ainda é um fenómeno tão expressivo, porque é que as pessoas cometem atos de violência a quem amam ou já amaram, a quem é mais vulnerável e não tem capacidade para se proteger, e porque é que nascer do sexo feminino ainda é uma condição que pode implicar desigualdade? As crianças têm em si a genialidade de nos confrontarem com questões tão incómodas quanto oportunas que nos devem fazer parar e pensar…
O fenómeno da Violência Doméstica começou por ser circunscrito às relações de conjugalidade ou análogas (incluindo namoro), mas tem vindo a evoluir e hoje em dia abrange crianças e jovens, grupos em situação de vulnerabilidade (por exemplo, adultos mais velhos) e a violência filioparental (de filhos para pais).
Apesar das diversas evoluções conceptuais que o termo Violência Doméstica tem apresentado ao longo do tempo, é relativamente consensual que este se refere à “relação entre um conjunto de pessoas (e.g., crianças, homens, mulheres, adultos mais velhos) e à presença de actos que, de forma global, são definidos como comportamentos violentos (i.e., de força, intimidação, humilhação, agressão e/ou coação, entre outros), intencionalmente exercidos de forma isolada ou continuada, por uma ou mais pessoas, sobre uma ou mais pessoas e que provocam danos físicos, emocionais, sexuais e/ou psicológicos que se fazem sentir de forma imediata, a médio ou a longo prazo”.
Mais recentemente, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, ratificada pelo Estado Português em 2013, definiu Violência Domésticacomo todos “os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar, entre os actuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infractor partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima”. E só este ano foi publicado o Estatuto de Vítima que prevê, por exemplo, que crianças e jovens que presenciem Violência Doméstica passam a ter este estatuto.
Estamos, portanto, perante um fenómeno extremamente complexo influenciado por aspectos culturais, religiosos, ideológicos e politico-legais e, simultaneamente, determinado por fatores individuais, relacionais e comunitários. Sabemos que Violência Doméstica tem impacto em todo o ciclo de vida, desde a infância, passando pela adolescência até à idade adulta, sendo um padrão de comportamento com tendência para se repetir, caracterizado por aquilo a que chamamos transgeracionalidade. Por todas estas e outras razões, é tão relevante sublinhar a importância da prevenção e a quebra do ciclo transgeracional da violência.
Infelizmente, a pandemia trouxe consigo uma realidade paradoxal: se por um lado, se constatou uma diminuição do número de queixas e de sinalização às entidades competentes; por outro, tem-se registado uma agudização das situações de conflitualidade e de violência familiar. Estes dois factores aliados ao agravamento das condições socioeconómicas de muitas famílias e à dificuldade no acesso aos serviços e apoio tem contribuído para exponenciar o fenómeno.
Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, em 2020, as forças policiais receberam em média, por mês, mais de 2300 participações de Violência Doméstica, mais de seis por dia, três por hora, num total de 27.637 denúncias. O número de mortes por Violência Doméstica mantém-se nas três dezenas de vítimas anuais, entre as quais crianças e jovens, a par do suicídio de uma significativa percentagem das pessoas agressoras.
Para alterar esta realidade, é necessário empreender um grande esforço e uma resposta concertada dos vários setores na divulgação de recursos de apoio, na criação e adaptação das respostas às contingências atuais, bem como na afetação de mais recursos humanos. Esta é claramente uma área na qual uma intervenção multidisciplinar e integrada é absolutamente necessária e na qual os psicólogos podem desempenhar um papel fundamental na intervenção com pessoas envolvidas, directa ou indirectamente, nos seus diversos contextos de prática profissional, utilizando o seu conhecimento científico para a concepção e implementação de medidas e programas que contribuam para a sua redução e prevenção, bem como para aumentar a literacia e informar o debate público sobre estas matérias. Os seus contributos são essenciais na promoção da mudança social e diminuição do estigma e dos preconceitos que afectam a saúde e o bem-estar das pessoas impactadas por esta realidade.
Na sequência da publicação da Resolução de Conselho de Ministros nº 139/2019 de 19 de agosto, os profissionais têm hoje ao seu dispor um conjunto de novos instrumentos de combate à Violência Doméstica que podem ser consultados no website da CIG. Muito recentemente, esteve também em discussão pública o documento “Linhas de Orientação para a Prática Profissional no âmbito da Violência Doméstica” elaborado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses que brevemente será publicado na sua versão definitiva.
E voltando à pergunta difícil que um dia a minha filha me fará, restar-me-á transmitir-lhe que a violência é como uma bola de neve que é preciso travar, uma luta sem vencedores e que só as palavras conciliadoras e os gestos de amor têm o verdadeiro poder da transformação, na esperança de que ela própria possa vir a contribuir para um mundo melhor, com mais paz e menos desigualdade.