Começaram por ajudar os lares do Algarve e Alentejo a lidar com a covid-19 e passaram a pandemia a usar a ciência para resolver problemas na região – e também a nível nacional – desde que o Governo lhes pediu esse contributo.
O Algarve Biomedical Center (ABC) nasceu em 2016, ligado à Universidade do Algarve, e, num ano, passou de um orçamento de 300 mil euros para quase 10 milhões, vindos de grandes projetos como a avaliação de fármacos para a Agência Europeia do Medicamento (EMA) ou de fundos europeus para investigação científica.
Em entrevista ao Expresso, o presidente do ABC, Nuno Marques, descreve o salto que o pequeno centro deu em tão pouco tempo e a responsabilidade que assumiram para melhorar os cuidados de Saúde da população mais idosa e mais vulnerável da região.
Em que consiste o projeto de videojogos da Marvel e Disney que quer trazer para Portugal?
É um projeto de Neurociências e Neurologia, ligado ao envelhecimento ativo. Começou com um investigador da Universidade de Johns Hopkins, chamado John Krakauer, que quis perceber se os tratamentos de fisioterapia e outras terapias eram a melhor opção para quem teve um AVC ou para quem perde capacidades ao longo da vida. Lançaram um desafio à Marvel e à Disney, e contrataram os dois melhores de cada empresa para criar um videojogo com mecanismos de inteligência artificial que repercute os movimentos das pessoas e melhora a sua capacidade cognitiva e física.
Como é que funciona o videojogo?
É muito simples. A pessoa entra para um sala com um ecrã enorme, sem precisar de óculos de realidade virtual, e é como se fosse um golfinho, dentro de água, a fugir de tubarões e a comer peixes. As pessoas têm sensores nos membros e é com base nos seus movimentos que o golfinho se mexe. Os níveis de dificuldade são definidos com base na prescrição do neurologista. O investigador da Johns Hopkins conseguiu demonstrar em ensaios clínicos que este método tem melhores resultados e lançou ao ABC a ideia de aplicarmos isto à comunidade. Por isso, no primeiro semestre do próximo ano, vamos ter o primeiro centro de aplicação a funcionar no Algarve, em Tavira. Vai ser um centro altamente diferenciado em Neurociências com utilização de uma tecnologia que não é difícil de implementar. No próximo ano deverá estar à disposição também no Alentejo e, se resultar, pode ser alargada ao país todo.
O ABC deu um grande salto com a pandemia e teve um papel fundamental no Algarve e Alentejo. Como surgiu o vosso primeiro contributo?
No final de janeiro, fomos para o terreno fazer ações de formação sobre a pandemia e, em março, a senhora ministra do Trabalho contactou-nos a perguntar o que seria possível fazer em relação aos testes à covid, numa fase em que só havia uma marca de kits e não eram suficientes. Nessa altura, já tínhamos montado o drive-through de colheitas no Algarve, que foi o primeiro no país e evitou que se entupissem as urgências com pessoas à espera de testes. Também já tínhamos percebido a dificuldade em ter testes suficientes e sabíamos que os lares eram uma questão crítica. Foi aí que começámos a dar uma resposta mais ampla e, do esforço da academia, arranjou-se solução de testes para todo o país. O trabalho de equipa foi chave nesta fase da pandemia.
Sentiu esse peso da responsabilidade na região?
Sim, não só na região, mas em encontrar soluções para o país. Disse sempre à minha equipa que não podíamos deixar ninguém sem solução. Senão, não estávamos a fazer Ciência, que é encontrar solução para os problemas na sociedade. O que foi extraordinário na pandemia é que, quando se percebia que uma solução resultava, partilhava-se por toda a gente no país. E isso nunca aconteceu na Ciência, as pessoas habitualmente ficavam com a solução para si para lhes dar vantagem. Mas divulgar e aplicar as soluções ao país todo permite, em menos tempo, alcançar desenvolvimentos que levariam anos.
O centro passou a gerir um orçamento de quase 10 milhões de euros. Como é que cresceram dessa forma?
Tínhamos um ano e meio quando a pandemia apareceu. Começámos com um núcleo de oito investigadores e tínhamos três pessoas a trabalhar para nós. Acabámos 2020 com 3500 pessoas. É um crescimento que não aconselho a ninguém. Estava planeado para cinco anos e foi feito em três meses. Mas o centro está a funcionar de forma completamente sustentável e sem depender do Orçamento do Estado, o que não é habitual. Fizemos uma grande aposta em prestar serviços, por exemplo através do contrato de cinco anos assinado com a Agência Europeia do Medicamento (EMA), para fazer testes aos fármacos – e até já estamos a avaliar três. Nesse concurso da EMA, responderam 400 centros e ficámos em primeiro lugar.
O vosso financiamento depende desse tipo de prestação de serviços?
Sim, e de fundos europeus. Temos garantidos cerca de 25 milhões de euros nos próximos anos nos vários projetos. No ano passado, gerimos um orçamento de 8,9 milhões de euros e estamos já próximos dos 12 milhões. Antes da pandemia estávamos a crescer, mas o orçamento foi de €80 mil em 2018 e €300 mil em 2019. Orgulhamo-nos de ter criado tudo isto sem depender de financiamento do Centro Hospitalar Universitário ou da Universidade do Algarve, que são os nossos dois sócios. E estamos a captar verbas que, de outra forma, provavelmente, nem viriam para o país.
O ABC fez estudos serológicos com a Fundação Champalimaud e continuará essa ligação. Como surge a parceria?
O ABC estabeleceu com a Câmara de Loulé um protocolo para a criação de duas grandes instalações para investigação e uma delas envolve o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), Infarmed e INEM, com uma descentralização de competências nacionais para o Algarve que vai dotar-nos de uma grande capacidade de investigação nestas áreas de biomedicina. A Fundação Champalimaud percebeu o cluster que está a ser criado e viu que havia condições para uma parceria com o ABC, assinada em 2019. Estamos já a fazer uma formação única, de pós-graduação, para investigadores já doutorados da Champalimaud, que têm dificuldade em comunicar com os clínicos por terem formas de pensar diferentes. Vai levar a desenvolvimentos muito importantes na área da Ciência e Medicina.
Está no fim dos seus três anos de mandato na direção do ABC. O que se espera daqui para a frente?
Temos em mente projetos de grande impacto na região, com muitas dezenas de milhões de euros para implementar nos próximos anos. Como associação sem fins lucrativos, todos os proveitos do ABC têm de ser aplicados em novos desenvolvimentos que levam a mais inovação, mais capacidade e à melhoria dos cuidados da população. Com a pandemia, vimos melhor as fragilidades do sector social e percebemos que esta população não pode ficar esquecida.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL