Na matriz de risco da DGS, há muito que estamos no vermelho. O valor sem precedentes de novas infeções, impulsionado pela proliferação da variante Ómicron, fez disparar o nível de risco. No entanto, a pressão nos serviços de saúde está longe de atingir a situação crítica de há um ano, o que é um fator tranquilizador: de acordo com o último relatório das linhas vermelhas, a ocupação em cuidados intensivos fica-se por 60% do nível de alerta, a nível nacional.
Há, no entanto, um “indicador incómodo”: a mortalidade. Por dia, nas últimas duas semanas, a média de óbitos no boletim covid-19 é de 37,3 – um valor distante dos meses negros de janeiro e fevereiro de 2021, mas que ainda assim suscita questões. “O único elemento de referência que temos é o valor do ECDC [Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças]”, que traça a linha vermelha nos 20 mortos, em 14 dias, por milhão de habitantes, explica o investigador Tiago Correia. Portugal está claramente acima: a 19 de janeiro, de acordo com o relatório das linhas vermelhas da DGS, o valor era de 37,6, um aumento de 47% face à semana anterior. Assim acontece desde 10 de dezembro, com tendência crescente.
Apesar da experiência acumulada em cinco vagas e quase dois anos de pandemia, os números causados pela nova variante atual são difíceis de analisar. “A questão é que não temos termo de comparação para saber o que é uma mortalidade excessiva por covid ou o que é aceitável e vai ser normal”, afirma o professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa. Neste ponto, pondera-se já a passagem da pandemia para o nível de endemia – uma doença instalada na comunidade, mas com um padrão previsível, em que que alguns epidemiologistas até dizem que já nos encontramos.
“Temos muitos casos, mas com uma severidade limitada”
Esta quarta-feira foi registado um novo máximo de novas infecções (mais de 65 mil). Em contrapartida, os internamentos (2313) correspondem a cerca de um terço dos de há um ano. Apesar do disparar dos casos, o número de doentes graves é praticamente idêntico ao de um mês (151).
“Olhando para o panorama geral, há uma situação que não está propriamente descontrolada”, considera o matemático Óscar Felgueiras. Afinal, as características da nova variante têm gerado “muitos casos com uma severidade limitada”.
As previsões indicam que este cenário se deverá manter. “Não vamos chegar às linhas vermelhas dos internamentos e cuidados intensivos. Isto faz-nos assumir que as coisas estão a correr bem, mas já passamos a linha vermelha dos óbitos”, contra-argumenta Tiago Correia.
O que são afinal as “linhas vermelhas”?
A discrepância na análise da atual situação pandémica surge na mortalidade. “No imediato não estamos a fazer a discussão nem vemos nenhuma interpretação sobre a mortalidade, porque é o indicador incómodo. É a zona cinzenta que é difícil de interpretar”, afirma Tiago Correia.
Os óbitos registados esta quarta-feira (42) estão muito longe dos 303 registados há um ano, a 31 de janeiro de 2021, o dia com maior mortalidade desde o início da pandemia. Contudo, a média está acima da linha vermelha, entrando já na classificação de “risco elevado”. Esta referência, traçada pelo ECDC em março de 2021 com base no guia da OMS, resulta de uma matriz que estabelece seis níveis para a situação epidemiológica. Portugal está atualmente no quarto nível de gravidade.
Estas matrizes de referência visam providenciar “um enquadramento coerente, mas não prescritivo, para afinar as medidas de resposta à covid”, explica o ECDC. Por outras palavras, o seu objetivo é ajudar os governos a analisar a situação em mãos para agir em conformidade.
“A [linha vermelha] é uma convenção do ECDC que serve de referência. O desejável será sempre estarmos abaixo dessa linha de referência”, explica o matemático Óscar Felgueiras. “Nas circunstâncias como a atual, certamente isso merece alguma reflexão em termos do que se deve ou não fazer em termos de medidas.”
Tiago Correia sabe que toda a gente quer “retomar a normalidade”, ninguém quer ouvir falar de um confinamento, nem sequer de horários limitados no comércio ou mesmo da apresentação de certificados. A pergunta é “que preço” aceitamos pagar: “Neste momento não está a haver qualquer reflexão sobre qual é o número aceitável do ponto de vista ético para que possamos voltar à normalidade.”
“A maioria dos óbitos são idosos, como tem sido sempre”
A OMS considera a mortalidade um “indicador indireto da incidência” que providencia uma medida “retardada” da evolução da mesma. Apesar dos números de novos casos terem começado a subir a partir do meio de outubro, a linha vermelha dos óbitos só foi ultrapassada há cerca de mês e meio.
Segundo Óscar Felgueiras, esta discrepância justifica-se porque “a mortalidade está bastante condicionada pela evolução nos mais idosos”. “A maioria são idosos, como tem sido sempre”, explica o matemático. Dos 42 óbitos registados esta quarta-feira, 24 tinham mais de 80 anos e outros 10 estavam entre os 70 e 79.
“Houve uma subida recente, o que significa que pode ter havido uma subida de casos, nomeadamente nos 80+. Esta é a única faixa etária que ainda não chegou ao pico da incidência atingido em janeiro do ano passado. Os idosos têm estado bastante protegidos, com uma incidência relativamente baixa”, explica Óscar Felgueiras.
A questão que se coloca é qual será a evolução a partir daqui. “Toda a gente espera que diminua, mas se assumirmos que vamos ter esta infeção a circular, é de esperar que enquanto houver pessoas suscetíveis e vulneráveis, a mortalidade vá continuar elevada.”
“É sempre um bocado incerto, mas espera-se que [depois deste pico] haja alguma normalização”, corrobora Óscar Felgueiras, devido à proteção adicional “conferida não só pela vacinação, mas também pela infeção.” “Em termos de medidas, é difícil dizer até que ponto é que se consegue proteger completamente os idosos numa situação destas”, acrescenta o especialista da equipa da Administração Regional de Saúde do Norte que acompanha a pandemia.
“Falar de endemia não significa que um vírus desapareça ou que passe a ser inofensivo”
Para o futuro, definir o que constitui excesso de mortalidade vai também depender da evolução da própria pandemia. Nas últimas semanas tem-se falado sobre a entrada numa nova fase, a endemia. Embora Marcelo Rebelo de Sousa tenha já assumido publicamente que o país está nesse momento – assim como alguns epidemiologistas -, Tiago Correia é mais cauteloso.
“A minha expectativa é que estejamos a entrar neste caminho da endemia, sem lhe poder chamar endemia”, afirma. Trocado em miúdos: “A endemia significa que percebemos o vírus e o seu comportamento, que conseguimos antecipar onde é que vai surgir, em que altura do ano, em que pessoas. O sinal mais óbvio de que ainda não conseguimos fazer isso é que não sabemos com que periodicidade é que temos de nos vacinar”. 2022 será assim, na sua opinião, um ano de uma transição progressiva para esta nova fase.
E a endemia da covid-19 ainda pode trazer surpresas, explica. “Uma doença endémica não é necessariamente igual a outra. Por exemplo, a malária é endémica em muitos países africanos, mata e não tem cura”, mas a gripe também é endémica e tem uma expressão completamente diferente. O que também depende dos tratamentos que surgirem.
Portanto, “falar de endemia não significa que um vírus desapareça ou que passe a ser inofensivo” e a sua configuração “vai condicionar muito aquilo que vai ser a mortalidade da covid-19”.
“Mortalidade excessiva” do inverno pode “normalizar” mortes covid
Nesta análise, Tiago Correia sublinha também que, em Portugal, há uma mortalidade excessiva por doenças e infeções respiratórias no inverno que já existia muito antes da covid-19.
“Sabemos que temos uma população muito vulnerável [a estas patologias] do ponto de vista da epidemiologia, mas também do ponto de vista social. A nossa população mais velha é tendencialmente mais pobre e vive em pobreza energética sem condições muitas vezes para se aquecer, além das faltas no acesso a profissionais de saúde.”
Isto pode contribuir para uma certa “normalização” da mortalidade covid, à semelhança do que aconteceu com a gripe. “No início desta pandemia houve, e bem, uma excessiva preocupação com a mortalidade covid e tive a expectativa que isso nos fizesse ter a reflexão que em Portugal se morre muito todos os anos com infeções respiratórias.”
“O que me parece que está agora a acontecer é que não se aprendeu nada com a pandemia. Esses óbitos estão a acontecer, mas parece que este número não existe. Assume-se este número de óbitos como normais sem termos a certeza se são ou não evitáveis.”
“A massificação retira muito da vivência individual e isso pode trazer uma vulgarização do sofrimento”
À reflexão ética sobre esta mortalidade acresce a dimensão psicológica e sociológica. Enquanto sociedade, desenvolvemos uma estratégia coletiva para sobreviver à pandemia que, de forma natural, passa por uma relativização. As conferências da DGS ou os boletins diários que tanto destaque tinham no início de 2020 foram progressivamente perdendo relevo.
“Hoje continuamos a ter números muito intensos, mas, após o impacto do momento, desvalorizamos. As alterações do próprio vírus potenciam isso, [achamos que] é tudo menos grave do que no ano passado e que a outra variante é que era mais perigosa”, afirma o psicólogo Eduardo Carqueja.
“Por um lado, [essa desvalorização] ajuda, mas por outro também desvirtua o impacto que cada pessoa possa ter na sua vida. É o problema da massificação do acontecimento em função da individualização do sofrimento. A massificação retira muito da vivência individual. Isto pode trazer aqui uma vulgarização do olhar para o sofrimento das pessoas”, desenvolve o presidente da Direção da Delegação Regional Norte da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Para agora, o especialista considera ser ainda cedo para perceber que impacto é que esta mortalidade terá na nossa sociedade, mas é algo que “será interessante estudar daqui por alguns anos”.
“Estamos numa altura de excelência para repensar o tipo de intervenção que podemos fazer ou vir a ter no futuro para as pessoas em luto. Se não, somos meramente reativos aos acontecimentos. Parece que, depois desta pandemia, a endemia vulgariza-se, mas as perdas continuam a ter o valor que tinham até esta altura. As necessidades que estas pessoas têm continuam a ser pouco tidas em conta”, analisa.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL