Sábado foi o último dia de clausura. No dia seguinte, liberdade. Ricardo e Isabel Ribeiro e os filhos, Xavier e Clara, estão desde 28 de dezembro isolados num 5º andar de Mem Martins, em Sintra. O vírus foi passando de casa em casa, de festa em festa, até chegar ali. Dia 20 foram os anos da sobrinha, uma celebração pequena. Uma mãe entra para ir buscar a filha convidada, fica para uns dedos de conversa e uma fatia de bolo. Positiva sem saber, deixou o vírus. A irmã e a sobrinha de Ricardo apanham covid-19. O período de incubação, sem sintomas nem deteção, bate com o Natal. Reúne-se a família e trocam-se mais do que prendas. Ricardo e a filha, de quatro anos, ficam positivos. Só Xavier e Isabel permanecem incólumes, a rezar a cada teste rápido para que assim se mantenham, senão volta tudo à estaca zero: mais sete dias sem pôr um pé na rua.
Não estão sozinhos neste “Fechados em Casa”, que não é de ficção. De acordo com a DGS, há atualmente mais de 436 mil pessoas em isolamento profilático em Portugal, entre positivos e contactos de risco, muitos contagiados durante o período festivo. E nem a recente redução da quarentena de 10 para sete dias para casos assintomáticos ou com sintomas ligeiros vai conseguir refrear os números. Cálculos feitos pelo matemático Carlos Antunes preveem que na próxima semana haja meio milhão de pessoas isoladas, descendo muito ligeiramente até ao final de janeiro, quando se realizarem as legislativas.
Ricardo não está a trabalhar, apesar de os sintomas não terem passado de uma dor de cabeça e apenas durante um dia. É comercial numa empresa de material médico e promotor imobiliário em part-time — e não consegue fazê-lo à distância. Melhor para a logística familiar, que contou com dois braços mais livres para ocupar as crianças, de quatro e sete anos. Isabel continuou em teletrabalho — na área de marketing — na secretária que instalou no quarto do casal, para estar mais recatada (sem sucesso). Há dois anos que trabalha assim e não deverá mudar.
“É muito complicado não poder sair e principalmente ter os miúdos fechados. E, vá lá, que não estão em aulas. Volta e meia, a Clara olha para a janela e diz: ‘Hoje está muito sol. Podemos ir à rua…’. Dá uma pena. Mas a verdade é que já sabíamos como iria ser”, conta Isabel. Em janeiro, o vírus entrou pela primeira vez lá em casa, durante a pior e mais mortífera vaga da pandemia. “Aí foi assustador. Como não demos todos positivo ao mesmo tempo, dividimos a casa, as casas de banho, andávamos de máscaras e luvas, levava a comida num tabuleiro que pousava à porta do quarto numa cadeira. E ficámos todos com sintomas e prolongados”, recorda Isabel.
As vacinas, que os dois já levaram, e a menor gravidade da Ómicron aligeiram-lhes agora os medos e as precauções. “A nossa maneira de encarar a doença é completamente diferente”, reconhece Ricardo. E, à falta de mal-estar, nem cancelaram a festa de fim de ano. Decorou-se a sala com fitas prateadas, houve karaoke, discoteca e jogos de tabuleiro, roupa de cerimónia e comida a condizer. E da janela da sala, virada para um parque, até assistiram ao fogo de artifício da vizinhança. Ninguém adormeceu antes da meia-noite.
“O pior mesmo foi a dificuldade em contactar a Saúde24 ou obter algum esclarecimento. No dia em que fiz o teste na farmácia e deu positivo, disseram-me que iam reportar e que alguém me iria ligar. Essa chamada nunca chegou. Mas eu percebo, são muitos casos. Agora só quero que isto acabe para o ano começar”, desabafa Ricardo.
Positivos em Portugal e Itália
Em Lisboa, na Ajuda, Álvaro Manzo e Tiago Ferreira também entraram no novo ano em isolamento. A história é em tudo semelhante à da família Ribeiro. Mesmo restringindo os contactos à família e amigos próximos durante as festas, como António Costa tanto recomendou, o vírus arranjou maneira de entrar.
É sabido que a variante Ómicron esgueira-se com maior facilidade, ao multiplicar-se 70 vezes mais rapidamente nas vias respiratórias superiores. E continua a disseminar-se a grande velocidade, podendo o “efeito festas” de Natal e ano novo ser uma explicação, avançou o epidemiologista Baltazar Nunes na reunião do Infarmed realizada esta quarta-feira. Até 12% da população portuguesa poderá vir a estar isolada, projetou o perito do INSA.
“Não sabemos como apanhámos. Os sintomas começaram no dia 26: dor de cabeça, dores no corpo, cansaço, tosse. Fui à farmácia, disseram-me que devia ser ainda efeito da vacina da gripe, que tinha tomado há pouco tempo, ou uma constipação e deram-me medicação. No dia seguinte começou o Tiago também com sintomas, mas passaram rápido e não ligámos”, conta Álvaro Manzo, um italiano a viver em Portugal desde 2005.
Com a passagem de ano combinada em casa de amigos, decidiram fazer um teste uns dias antes. Deram os dois positivo. E logo começaram a chegar as notícias de outros casos próximos: o irmão e a cunhada do Tiago, o irmão da cunhada…
A semana de quarentena nem calhou mal. Álvaro estava em teletrabalho — é analista financeiro — e assim se manteve. Tiago estava de férias da universidade, onde está a tirar Engenharia, e só teve de meter baixa no restaurante onde trabalha. Mas havia um problema: não tinham comida. Numa casa onde se privilegiam produtos frescos, o que havia no frigorífico não dava para 10 dias de isolamento. “Fomos encomendar online e as compras só chegavam a 2 de janeiro, já no ano seguinte. Valeram-nos os bons vizinhos, que nos trouxeram o que era mais urgente”, recorda Tiago.
Os colegas do Crossfit, com quem iam passar o ano novo, também não os esqueceram e deixaram-lhes croissants à porta. Mas Manzo, conhecido por ser o rei de qualquer festa, decidiu que não iria deixar que um vírus estragasse a entrada em 2022. Um amigo foi entregar-lhe camarões, o talho da rua levou umas coisas, a mercearia local outras tantas e arranjou-se “uma festa jeitosinha”.
Fizeram focaccia, vestiram camisa e laço e festejaram as 12 badaladas, em dois fusos horários, com as famílias italiana e portuguesa, através de videochamada. Do lado italiano, também o vírus marcou presença: “Os meus pais, a minha irmã, a minha sobrinha, está tudo positivo”, revela Álvaro. Itália, tal como Portugal, bate recordes de novas infeções: regista diariamente mais de 189 mil casos.
Na quarta-feira, Manzo recebeu uma chamada do centro de saúde a dar-lhe alta. Tiago ainda aguarda a sua.
Em busca da liberdade
Na Guarda, Sara Gonçalves recebe as notícias dos números de isolamentos como se se tratasse de uma realidade distante, estrangeira, mas que já foi a sua no longínquo mês de agosto — “em outra vida”. Casada, com três filhos e grávida de oito meses do quarto, vivia numa moradia com piscina em Vila Nova de Gaia quando o marido testou positivo. E ela a seguir. “Ficámos fechados praticamente um mês. Primeiro nós, os 10 dias, e os miúdos 14, mas quando foram repetir os testes a Maria deu positivo, o que implicou mais 14 dias para os irmãos”, recorda.
Se o isolamento é desafiante para qualquer pessoa, para uma família numerosa — Inês com sete anos, Maria, cinco, e Santiago, um — ganha laivos de caos. ”Não tínhamos a perceção do que é ficar fechado. Falta tudo, as coisas mais básicas. Tinha uma rede de amigos, ora pedia a um, ora pedia a outro, eles iam pondo à porta. Coisas simples, como o detergente da loiça ou o célebre papel higiénico. E aprendi o que era fazer compras online, pois ainda não tinha tido essa necessidade”, lembra Sara.
Quando não estava a planear estratégias para entreter os filhos — “também recorremos aos ecrãs em nome da nossa sanidade mental. Precisámos daqueles minutos em que eles não se estão a matar” —, o casal falava cada vez mais de mudar de vida. Como se aquele confinamento obrigatório lhes mostrasse que precisavam de horizontes maiores onde criar os filhos.
Tinha a Ema acabado de nascer quando puseram a moradia à venda e se mudaram para um apartamento na Guarda, onde vão viver até estar pronta a casa de campo que idealizam. “Claro que há covid em todo o país. Mas aqui eu posso levar os miúdos a correr no meio da floresta ou ir ver a neve à serra — já caiu o primeiro nevão — e lá não há contactos de risco, não há vírus. Foi preciso estarmos todos presos, perdermos a liberdade de tudo, para percebermos que não queríamos abdicar dela outra vez.”
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL