A antiga fábrica de Pinhão foi arquitetonicamente convertida numa espécie de casa algarvia gigante e tradicional, com paredes brancas e dois grandes pátios interiores, e prepara-se para receber 70 utentes que sofram de qualquer demência.
“É a única resposta social do género a Sul do Tejo”, diz Francisco Amaral, médico e presidente da câmara. A autarquia é parceira da Santa Casa da Misericórdia de Castro Marim na construção daquele que vai ser um lar diferente.
“Achamos que a abordagem à doença deve passar pela reabilitação e estimulação cognitiva, ou seja, vamos investir nas terapias não farmacológicas”, explica Iola Fernandes, a diretora técnica. A estratégia nota-se nas pequenas coisas.
Onde era suposto ter nascido uma capela, vai haver uma mercearia antiga. “Não se trata de desvalorizar a questão espiritual, mas para estas pessoas é fundamental o estímulo das funcionalidades”, acrescenta.
A tal mercearia vai estar rodeada de mesas viradas para o jardim. “Sempre que um idoso lá for comprar um bolo ou uma maçã vai estar a fazer treino cognitivo. Na maior parte dos casos, ao dar entrada num lar, as pessoas deixam de mexer em dinheiro, deixam de ir ao supermercado ou aos correios e essas atividades instrumentais da vida diária vão-se perdendo, comprometendo a autonomia e a autoestima”.
O campo na memória
A diretora técnica da instituição, formada em política social e pós graduada em intervenção com doentes de Alzheimer defende que nem tudo está perdido quando se começam a perder as faculdades. Há sempre trabalho a fazer e por isso, ali, só deverão permanecer acamados os casos terminais. “Apesar dos quartos que vamos ter no primeiro andar serem apetecíveis e confortáveis, queremos que boa parte do tempo seja passada em atividades de grupo, como a arteterapia, nas terapias personalizadas e nos espaços comuns, concebidos para trabalhar estas vertentes”, diz Iola Fernandes.
A estimulação dos utentes vai passar muito por desenterrar as memórias primordiais, que nem o tempo costuma apagar. Por isso, no coração desta estrutura residencial para idosos vão estar dois jardins interiores. Num deles, alfarrobeiras e amendoeiras ajudarão a trabalhar a reminiscência dos utentes. A ligação à terra, aos cheiros e ao imaginário tradicional, que terá acompanhado a maioria destes idosos desde o berço.
No outro pátio, vai surgir um jardim sensorial, com um espelho de água e diferentes níveis, para que tanto alguém numa cadeira de rodas, como com boa mobilidade possa trabalhar os diferentes sentidos. “Do outro lado do edifício, vamos ter também uma pequena horta biológica. Lá está, mais uma vez, o foco na reminiscência. Muitas destas pessoas têm as suas origens no campo e mexer na terra permite trabalhar a parte cognitiva e a memória”.
Que ninguém se perca
Faltam já pouco para a obra estar concluída. Lá para Julho já o ruído de ferramentas elétricas e o vai e vem de operários da construção terá parado. Nessa altura, o espaço deverá receber os primeiros equipamentos e mobiliário.
Quando se entra, à direita, encontram-se salas de arrumos, casas de banho, lavandaria, cozinha e um refeitório cheio de luz. Do lado de lá dos dois pátios interiores há várias salas e gabinetes. No primeiro andar, 34 quartos cheios de sol serão a zona de descanso dos 70 utentes, que até ao final do ano terão de ocupar todo o piso superior. De algumas janelas, avista-se a Ponte Internacional do Guadiana e o outro lado da fronteira.
Todo o edifício está pensado no acolhimento a pessoas com necessidades especiais. Para ajudar no reconhecimento do espaço mais íntimo reservado a cada utente, à porta dos aposentos não estarão números ou nomes. A fotografia de um cão, de uma árvore ou qualquer elemento visual que esteja ligado à vida e ainda presente na memória do idoso, será o sinal personalizado a mostrar a entrada de cada um.
A segurança dos utentes vai ser assegurada através de um apertado controlo de acessos, garante Gustavo Vera. O engenheiro responsável pela obra, que é também o vizinho da frente, que mora no outro lado da rua, explica “ as saídas são todas controladas por uma central. Só entra e sai de determinados sítios quem tiver um código. As pessoas não podem ir para as escadas ou para a rua sem que percebamos”.
Síndrome do pôr do sol
Mesmo numa região como o Algarve, com uma média diária superior a 8 horas de sol por dia – mais de 3 mil por ano -, o astro rei acaba inevitavelmente por se pôr. E é nesse momento do crepúsculo que se agita o ambiente num lugar onde haja doentes com demências. À medida que a luminosidade exterior vai diminuindo, regista-se uma maior instabilidade, delírios e agressividade em muitos idosos. A situação é já descrita como síndrome do pôr do sol.
Num espaço cheio de enormes e bonitos vãos, o edifício da Estrutura Residencial para Idosos de Castro Marim não negligenciou o impacto do entardecer nos futuros utentes. “Este edifício está preparado para, à medida que vai diminuindo a luz exterior, vá aumentando a interior, de forma a atenuar os efeitos do pôr do sol”, esclarece Iola Fernandes.
A questão feminina
A carteirinha transparente que traz pendurada ao pescoço, com uma cópia do cartão de cidadão e o número de telefone da filha quase passa despercebida, tapada pelo casaco abotoado. Aldina Corvo já se habituou a ela, ainda que lhe pareça um exagero. A família não quer que saia à rua de outra forma, depois de em Dezembro ter andado mais de cinco horas perdida, nas ruas do concelho vizinho, Vila Real de Santo António. Há dois anos que deixou o monte, perto de Odeleite, e se mudou para casa da filha, depois de alguns sintomas de Alzheimer se terem tornado mais evidentes e incapacitantes. Aos 84 anos encaixa bem no perfil que aponta uma maior prevalência das demências entre as mulheres.
Iola Fernandes explica: “além da questão da longevidade, pode haver também uma justificação histórica para que as mulheres sejam mais afetadas. Antigamente eram os homens que estudavam. Boa parte das mulheres era analfabeta. Eram também os homens quem trabalhava fora, as mulheres ficavam em casa.
Sem grande vida social, há domínios cognitivos que não são estimulados. Cientificamente sabemos que quanto maior for a nossa reserva cognitiva, mais são as armas para atenuar os efeitos da doença. Pessoas com mais recursos intelectuais conseguem desenvolver neuroplasticidade cerebral, que é a capacidade do cérebro fazer a mesma coisa mas afetando outros recursos”.
Quando um lar não chega
Num país onde quase 200 mil idosos sofrem de demência – Alzheimer na maior parte dos casos – e 50% das pessoas com mais de 90 anos padecem de uma deterioração irreversível de muitas funções cognitivas devido à doença, a longevidade crescente obriga à multiplicação das respostas sociais especializadas.
“A ERPI de Castro Marim é uma obra de futuro”, diz Francisco Amaral. A obra financiada por fundos comunitários do CRESC Algarve, em cerca de 1,1 milhões de euros, está orçada em 4,6 milhões de euros. Além do investimento da Santa Casa da Misericórdia de Castro Marim, a autarquia avançou com um milhão.
“É um investimento muito avultado para uma câmara pequena como o Município de Castro Marim, mas no Sul do país não há esta resposta”, acrescenta o edil.
“Os lares normais não servem para estes casos de demência”, remata.
Testemunha do esgotamento de algumas famílias que têm a seu cargo idosos nestas condições, o autarca-médico lamenta que não haja mais residências para utentes com Alzheimer.