A paz é “fria”, como apelidou Carlos César, ou “contida”, como apelidou o social-democrata David Justino, mas é “paz”. “Paz de espírito”, segundo Costa. Depois de vários truques para alimentar a novela da sucessão e esvaziar o balão do único sucessor que realmente o quer ser (Pedro Nuno Santos), António Costa subiu ao palco do congresso para dizer que só está preocupado com o país, não quer saber de “questiúnculas”. As questiúnculas deixa-as para os outros partidos, nomeadamente o PSD, que pouca ou nenhuma referência mereceu da parte do primeiro-ministro e secretário-geral do PS. É parte da estratégia: enquanto outros discutem partidos, Costa discute o país. Mariana Vieira da Silva, no primeiro dia, tinha dito a mesma coisa de outra forma: “só o PS tem António Costa”, que é o mesmo do que dizer que só o PS é capaz de reerguer o país da crise com o dinheiro negociado em Bruxelas.
Foi com essa áurea magnânima que subiu por duas vezes ao palco do congresso: na abertura, para enunciar o que foi feito nos últimos anos e para avisar o partido de que não deve adormecer à sombra da boa forma; outra, no encerramento, para recuar ao PS de António Guterres e Mariano Gago (que iniciaram “a maior mudança estrutural do nosso país”) e para se mostrar como o único que tem milhões e medidas para prosseguir esse caminho, gerir o pós-crise, erradicar a pobreza infantil, aumentar a natalidade, melhorar as condições do trabalho e capitalizar as empresas. Resumindo, chegar ao mundo perfeito. E isto não se coaduna com problemas internos do tipo dos que padecem outros partidos – como o PSD -, por mais que o PSD de Rui Rio queira puxar Costa para entendimentos em torno de reformas estruturais.
“Para irritação de muitos, não estamos com problemas internos e por isso podemos dedicar-nos aos problemas do país e dos portugueses, que é para isso que servem os partidos políticos”. A frase, dita no final do discurso de encerramento, já no meio de aplausos ruidosos, teve o condão de enviar indiretas para Rui Rio, mas ao mesmo tempo de firmar para dentro do próprio partido que há uma continuidade a ser mantida. E haveria outra frase para o mesmo efeito: “É por isso que saímos deste congresso com paz de espírito, mobilizados, determinados, com energia não para tratar dos nossos próprios problemas, mas para ajudar Portugal a vencer os problemas que tem, e para acabar de vez com a pandemia”.
Daí que não tenha falado – deliberadamente – do PSD nas suas intervenções. O nome de Rio nunca chegou a ser nomeado, nem o cargo. Caberia na ampla definição de “direita”, assim, toda junta, e na ideia de “oposição”, assim, toda junta, a quem cabe o papel de “construir uma alternativa à alternativa de esquerda”. O tom agressivo deixou-o para outros intervenientes – de Medina a Ferro, passando por Porfírio Silva ou Vasco Cordeiro, que foram profícuos na tarefa de procurar colar o PSD de Rio ao Chega de Ventura. Quanto a Costa, nem uma palavra. Diz que quer reformar o país (uma “atitude reformista” que tinha sido pedida por César na véspera), tem dinheiro para o fazer, mas à sua maneira.
Foto D.R. Ana Baião
UNIDADE ATÉ VER
Há uma contradição insanável no discurso de Costa. Se por um lado passou o congresso a evitar as “questiúnculas” do tabu sobre a sua continuidade e a sua sucessão, por outro lado foi o próprio que foi alimentando os temas: foi António Costa que pôs o prazo de 2023 para a sua decisão, na entrevista que deu ao Expresso, foi também o secretário-geral do PS que concordou com a montra dos quatro sucessores na mesa do congresso e por fim, foi também ele a dar gás à sua ministra da Saúde como uma possibilidade, numa entrevista à Rádio Observador.
Para um congresso sem história, estas seriam as histórias deste congresso que mostram que a tal “paz de espírito” é uma paz a prazo.
As ações de Costa não foram passando despercebidas dentro do próprio partido, que viu no paulatino aumento do lote de “sucessoráveis” uma diversão do primeiro-ministro para desviar o foco mediático e partidário do único que já mostrou vontade de dizer “presente” no pós-Costa, Pedro Nuno Santos. Foi um jogo de xadrez político entre os dois: se por um lado, Pedro Nuno Santos foi assunto pelo seu silêncio e pelo seu atraso, António Costa foi lançando nomes para o ventilador, para que o foco se dispersasse.
E essa ação serve também para fora. Sendo este o último congresso ordinário antes da sua decisão, quer mostrar que o PS é “o único” partido com mãos para o futuro, com ele ou sem ele.
Foto D.R. Ana Baião
MILHÕES A RODOS PARA A ESQUERDA E EM FORÇA
Foi um festival de “million dropping” ou, em bom português, uma festa de medidas de milhões para dizer qualquer coisa à esquerda antes das eleições autárquicas e para enquadrar as negociações com PCP e BE que começam já neste mês de Setembro, para o Orçamento do Estado para 2022.
Costa habituou-se a governar sozinho e também se habituou a falar pouco da sua relação com a esquerda. Neste seu discurso, até cumprimentou os parceiros (BE e PCP) com quem teve “o gosto desde 2016 de prosseguir uma caminhada”, mas daria nota de que tal foi sendo efeito de uma forma “umas vezes mais conjunta, outras vezes menos conjunta”. Uma referência que não seria agressiva para o ex-parceiro (BE), que diz querer resgatar. Por isso, saíram alguns elogios particulares.
Na fila da frente, Jorge Costa (BE) e Vasco Cardoso (PCP), “dos mais exigentes e também dos mais produtivos” negociadores com que Costa lida anualmente, tomavam notas das medidas que iam saindo do bolso de Costa. Check, check, check. Faltou aumento dos salários, faltou a garantia da reversão das leis laborais da troika, faltou o robustecimento do SNS. Estão céticos, mas faz parte da dança negocial. David Justino, por seu lado, notou que, quem conhece os pontos de negociação da esquerda, Costa foi a todos. Costa tem dinheiro (de Bruxelas) e não tem problemas, nem à esquerda nem lá dentro.
E foi nos milhões que se concentrou. Ia passando cheques à medida que ia dando a conhecer as medidas para a infância, juventude, medidas fiscais.
1 – Dez mil novos lugares em creches.
2 – Majoração da dedução familiar em IRS – Alargar a dedução existente dos 0 aos 3 anos para dos 0 aos 6 anos. São 900 euros em deduções, independentemente do rendimento das famílias.
3 – Para as famílias que não têm rendimentos à coleta haverá uma “garantia à coleta” em que “nenhuma família terá menos de 600 euros por filhos a partir do segundo filho”, disse.
4 – Aumento do abono de família para as crianças dos 3 aos 6 em situação de pobreza, do máximo de 50 euros para, nos próximos dois anos, atingir os 100 euros por criança. Nas crianças de mais de seis anos que recebem 37 euros atualmente, António Costa promete passar a 50 euros.
5 – Mais 2.750 milhões de euros para a habitação.
6 – Modernização das escolas profissionais e formação profissional no valor de 750 milhões.
7 – Prolongar por mais dois anos o Programa Regressar, até 2023 – No IRS Jovem, Costa promete torná-lo automático, alargá-lo progressivamente no prazo de cinco anos ao trabalho independente (com escalões de isenção variáveis ao longo do tempo).
Foto D.R. Ana Baião
A “paz de espírito” socialista alarga-se até à visão que têm da ‘geringonça’, mesmo que sem exaltação. Não houve quem se pronunciasse contra ou sequer duvidasse do caminho pela esquerda, mas houve poucos que se referiram aos acordos ou pedissem a Costa mais clareza ou que mostrasse mais vontade de recuperar os parceiros. Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, e Miguel Costa Matos, líder da JS, foram os únicos a vestir a pele de saudosistas da “geringonça”, com o líder da JS a pedir uma Aula Magna para “relançar” o entendimento à esquerda e Duarte Cordeiro a avisar os camaradas que não podem “ter tentações de auto-suficiência” porque “é à esquerda que o PS tem de procurar soluções”.
A mensagem política de Costa foi no entanto outra. Se nos cumprimentos decidiu matar os recados que tinha para todos os lados incluindo recados subtis para o Presidente da República – que se “mantenha as características do seu primeiro mandato” – e o elogio de raspão ao PCP e BE – “exigentes e produtivos” – o resto do tempo serviu para passar a ideia de um António Costa magnânimo, que só tem olhos para a governação.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso