Quando Mário Soares foi internado a 13 de dezembro, o que havia sobre funerais de ex-Presidentes da República era um estudo no âmbito do protocolo de Estado que Marcelo Rebelo de Sousa tinha encomendado em abril. Marcelo foi sensível à necessidade de se começar a definir o que seria um funeral de ex-chefes de Estado, até porque outro estudo, encomendado por Cavaco Silva, era sobre funerais de Presidentes em funções. Mas os documentos existentes eram genéricos e perante o estado crítico de Soares as campainhas tocaram. Era preciso começar a decidir pormenores.
Uma primeira reunião ocorreu poucos dias após o internamento do ex–chefe de Estado, com José Manuel dos Santos, histórico colaborador de Soares, em nome da família, ao lado de representantes dos três órgãos de soberania, do protocolo de Estado, da Câmara de Lisboa e das forças de segurança. A primeira decisão estava fechada – Soares teria um funeral de Estado (o último tinha sido o de Salazar). E o Governo faria na altura própria o decreto necessário para o efeito.
Faltava escolher o local onde iriam decorrer as cerimónias fúnebres que, não sendo Mário Soares católico, não teriam a solenidade das cerimónias religiosas mas não deviam ficar em desigualdade de circunstâncias. Teria de ser um local forte e solene. E surgiram duas hipóteses: a Assembleia da República e o Mosteiro dos Jerónimos.
A escolha não foi simples nem imediata. A Assembleia parecia o local óbvio para um republicano laico, ex-deputado e histórico defensor da democracia representativa. E chegou a haver um primeiro guião para o local. José Manuel dos Santos esteve lá e conta que até idealizou convidar Rui Veloso para cantar o rock da liberdade – “Para nós, só há a liberdade. Dizer sim ou dizer não” – que foi hino na primeira campanha presidencial de Soares. Mas surgiram problemas. O Salão Nobre era pequeno, o Senado, mesmo com ecrãs, não oferecia condições ideais, a circulação de carros era difícil, e não tendo Ramalho Eanes nem Cavaco Silva sido deputados alguém achou melhor caminhar para uma solução mais geral.
O primeiro-ministro sempre preferiu os Jerónimos, que, tendo um cariz menos político, tinham, no caso de Soares, a chama da adesão de Portugal à CEE. No dia 23, num almoço com Marcelo Rebelo de Sousa e Ferro Rodrigues, António Costa convence-os de que a melhor solução são os Jerónimos e a decisão ficou fechada, deixando para trás o Museu dos Coches, a Cordoaria Nacional, e os Palácios de Belém ou da Ajuda, que chegaram a entrar nas inúmeras conversas preparatórias.
Escolhido o Mosteiro, nada foi fácil. Entre o Natal e o Ano Novo choveu copiosamente e sendo os claustros a céu aberto temeu-se o pior. Estudou-se uma cobertura amovível e foram feitas prospeções de mercado, mas demorava dias. No fundo, não havia uma solução boa ou evidente e essa é a primeira conclusão a tirar: falta um decreto a definir de vez as regras sobre funerais de Estado e um local adequado.
O percurso que o cortejo fúnebre faria pela cidade foi traçado nas cinco reuniões (e inúmeros telefonemas) que marcaram estes dias. Houve visitas preparatórias aos diversos locais (só ao cemitério dos Prazeres foram três). E, no sábado, quando Mário Soares morreu, foi (quase) só acelerar.
Uma reunião de cinco horas acertou os pormenores e Marcelo, com António Costa e o ministro dos Negócios Estrangeiros fora do país, pôs-se ao telefone a mover diligências para assegurar presenças internacionais. Falou com o rei de Espanha, que lhe telefonou a dizer que queria enviar uma representação adequada. Marcelo não hesitou: sugeriu-lhe que viesse ele próprio (se o Presidente do Brasil vinha era bom ter uma alta entidade europeia). Depois, ligou ao rei de Marrocos, que enviou o irmão, e ao Presidente de Cabo Verde (era preciso que os PALOP não se ficassem pelo Brasil). O PS tratou da família socialista. Marcelo recebeu todos em Belém e o protocolo, assoberbado e a viver uma estreia, não chegou a tudo.
À hora do almoço, antes das cerimónias começarem, Belém teve de improvisar croquetes. Foi preciso convencer o pároco dos Jerónimos a deixar que a igreja fosse local de passagem das altas entidades que, por razões de segurança, não deviam misturar-se com o povo. A sala de credenciação dos jornalistas foi montada na sacristia. E, minutos antes de tudo começar, ninguém sabia dos auriculares para as cabinas de tradução.
Os tradutores vieram de emergência do PS. Para as longas horas do velório, ninguém tinha previsto nem catering nem casas de banho para a família. Na sessão solene, entre autarcas e artistas, fartaram-se de entrar não-convidados. E, no fim da sessão, havia entidades estrangeiras à porta dos Jerónimos (Schulz que o diga) sem transporte. As bandeiras nacionais não escaparam. Inspirados no funeral de Reagan, puseram uma cinta à volta das bandeiras que cobriam a urna, para não voarem. Mas, sendo compridas, uma rasgou-se. A substituta vinha errada (os castelos não tinham porta).
Nas ruas, o povo não esmagou. Responsáveis pela organização reconhecem que o percurso foi muito extenso: sete quilómetros. Mas destacam o imparável desfile de pessoas que se quiseram despedir de Soares. Marcelo Rebelo de Sousa esteve lá e fez contas: 12 pessoas por minuto, 720 por hora, 7200 em 10 horas. Órgãos de soberania e família, articulados, gostaram do que viram. Quem viu muito de perto diz que “não se imagina o grau de improviso e da graça de Deus”.
Texto originalmente publicado na edição de texto originalmente publicado a 14 janeiro 2017 do Expresso
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