Escrevo no princípio de novembro de 2022, num momento de profunda incerteza sobre o destino da Ucrânia e o futuro da União Europeia. A destruição da Ucrânia continua e os impactos das sanções contra a Rússia só produzirão todos os seus efeitos a médio e longo prazo, pois, em boa medida, tudo depende, agora, do que acontecer no interior da Federação Russa, na colisão eventual entre o povo russo e o regime do presidente. Não obstante, posso adiantar que, para já, a crise na Ucrânia salvou a União Europeia, deu-lhe um suplemento de alma e energia para lidar com as grandes transições que a Europa está a enfrentar e que marcarão a próxima fase da construção europeia. Refiro-me ao combate contra as alterações climáticas, à revolução energética e ecológica, à transformação digital, à transição demográfica e migratória, à revolução nos mercados de trabalho e ao combate contra a desigualdade social e a pobreza, à grande transformação da sua política externa e de vizinhança, à nova arquitetura de segurança e defesa europeia e, agora, também, a reconstrução da economia e sociedade ucranianas. No conjunto, refiro-me aos bens comuns europeus, rumo a uma União Europeia de inspiração política mais claramente federal.
Todavia, dada a profunda incerteza da conjuntura geopolítica atual, a governabilidade da policy and politics europeia será tudo menos pacifica. Tudo leva a crer que as grandes transições da década 2030 não seguirão um guião bem estabelecido e este facto relevante mina a segurança da política das administrações e a estabilidade institucional dos incumbentes respetivos. Por outro lado, paira uma nuvem densa e escura sobre toda a fronteira do leste europeu onde se faz sentir a área de influência da Federação Russa e, portanto, a iminência de uma nova guerra fria na Europa de Leste. De repente, tudo parece estar em causa – a segurança das populações, o abastecimento energético, a estabilidade de preços, os fluxos comerciais e financeiros – e nunca como agora as conexões entre soft power, geopolítica e governação multiníveis foram tão críticas, o que requer e reclama, no mínimo, alguma reflexão a propósito.
Em primeiro lugar, está em causa o princípio geral que rege a União Europeia há muitas décadas. Este princípio diz-nos que o seu poder comercial, económico e financeiro ou soft power e a interdependência ou reciprocidade que ele pressupõe e introduz são uma condição bastante para reger, também, a sua geopolítica de proximidade ou vizinhança. Estamos a falar de um equilíbrio muito delicado, de um policy-framework muito instável, que pode ser quebrado a qualquer momento como agora se constata com a guerra Ucrânia-Rússia, ou seja, o congestionamento do tráfego geopolítico europeu põe em causa o soft power europeu.
Em segundo lugar, no plano do mercado único europeu, não conhecemos em toda a sua extensão as consequências da revolução digital sobre os mercados de trabalho, os fluxos migratórios e o desenho das cadeias de valor; além disso, a chamada reindustrialização europeia pode ser acelerada em consequência do pacto ecológico europeu, da revolução da inteligência artificial e da economia circular e, agora, também, de uma certa recomposição e, mesmo, regionalização das cadeias de valor.
Em terceiro lugar, no plano da moeda única, estamos a assistir a um endurecimento da política monetária do BCE em consequência da inflação, falta saber como reagirão os orçamentos nacionais face a alguns efeitos assimétricos mais gravosos como, por exemplo, os efeitos económicos recessivos em 2023; é um cenário já conhecido da política europeia, resta, agora, saber se surgirá um acontecimento ou pretexto grave para passar à fase seguinte da integração europeia; além disso, não se trata apenas de manter a coesão interna da União Europeia, mas, também, de reforçar os programas de cooperação e ajuda internacionais sob pena de assistirmos ao desmoronamento de uma parte substancial da comunidade internacional, basta olhar à nossa volta.
Em quarto lugar, no plano das alterações climáticas, da descarbonização, das práticas ecológicas e da saúde pública assistiremos, provavelmente, ao surgimento de uma nova geração de regras de sustentabilidade forte que se traduzirão, em princípio, no reforço dos bens comuns globais; de resto, os efeitos globais da pandemia, das alterações climáticas e o colapso de algumas economias domésticas marcarão profundamente toda a década, com muitos acidentes imprevistos e outros tantos choques assimétricos;
Em quinto lugar, no plano das migrações, tudo se conjuga para um reforço dos fluxos erráticos de população, de asilados políticos de estados autocráticos e estados falhados, refugiados ambientais, refugiados da fome e da doença, refugiados por motivos étnicos e religiosos e de género, com consequências imprevisíveis sobre a natureza, linha de rumo e manipulação dos movimentos sociais; as últimas eleições em alguns Estados membros revelam um endurecimento da política doméstica e o crescimento das organizações e movimentos populistas e nacionalistas nos estados que são recetores desses fluxos.
Em sétimo lugar, no plano da arquitetura de segurança e defesa, assistiremos a uma revisão das relações de vizinhança com a Federação Russa, o Grande Médio Oriente e o Norte de Africa, razão pela qual daremos os passos necessários em direção a uma organização especificamente europeia de defesa e segurança e a um Conselho de Segurança Europeu.
Ora, tudo isto, que é previsível e provável do ponto de vista de uma geopolítica de proximidade, pode ser posto em causa devido à iminência de uma guerra fria longa na fronteira leste. Não é só a governabilidade da policy and politics europeia que fica comprometida, é, também, a eventual necessidade de rever a polity europeia, isto é, os tratados europeus por razões de emergência política iminente e grave. De facto, se esta tensão não for contida e limitada e assistirmos a uma escalada das sanções aplicáveis, ficarão seriamente em causa objetivos fundamentais como as metas de descarbonização 2030 e 2050, a segurança dos abastecimentos energéticos na Europa, a estabilidade dos preços e a segurança dos aprovisionamentos, a subida dos juros nos mercados financeiros, a ajuda e a cooperação internacionais bem como os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), problemas muito graves de saúde pública e novas epidemias surgirão. Ou seja, ficam em causa todos os bens públicos globais que a União Europeia e a Comunidade Internacional podem e devem proporcionar.
Nota Final
Aqui chegados, falta uma referência final aos incumbentes principais da policy and politics europeia. A União Europeia seguirá, provavelmente, o princípio geral de Jean Monnet, a saber, uma política de pequenos passos feita de utilitarismo e pragmatismo e um mix de atribuições federais, comunitárias e intergovernamentais. Quanto aos Estados membros, teremos, porventura, uma redistribuição de atribuições e competências pelos níveis subnacionais de governo e administração de acordo com a sua idiossincrasia política. No que diz respeito aos níveis infranacionais teremos mais democracia participativa e colaborativa a partir de iniciativas de coprodução e cogestão entre redes de cidades e regiões, mas, também, uma relação colaborativa mais intensa com os cidadãos por via de plataformas digitais e a digitalização da vida em comunidade. Em síntese, mais e melhor governação colaborativa multiníveis, mas, igualmente, um ambiente geopolítico saturado e uma radicalização política crescente com reflexos sobre a governabilidade da política doméstica e a condução da policy and politics europeia.
Artigo publicado no Observador.
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