Uma das histórias bíblicas mais abordadas nos dias de hoje é a de Jó, homem cujo gado, património e família se extinguem. Na mesma percebe-se um contraste com a retórica tradicional dos ensinamentos cristãos, segundo a qual o infortúnio é sinal do desagrado divino, algo que até os amigos de Jacob consideraram como única explicação possível para estas desgraças.
Porém, a sequência de eventos deveu-se a uma aposta entre Deus e satanás para testar a fé de Jacob. Ora, porque tal como Jó, também nós acreditamos muitas vezes controlar o nexo causal entre as nossas ações e os resultados que delas advêm, mas será isto verdade?
Um dos filósofos contemporâneos mais relevantes, Michael Sandel, aborda esta questão no seu livro A Tirania do mérito, ao descrever um cenário meritocrático que a partir da segunda metade do século XX se começou a intensificar. Segundo este, a importância desmedida pelo ensino superior — entendida aqui como credencialismo —, a globalização e o neoliberalismo causaram uma valorização excessiva do sucesso individual, criando uma cultura de arrogância onde quem vence acredita que isto se deve exclusivamente aos seus esforços, enquanto quem perde passa a ser interpretado como preguiçoso por não se ter empenhado o suficiente.
Ao afastarmo-nos dos livros para os atletas de alta competição, o panorama parece não ser muito distinto. Num dos discursos motivacionais mais conhecidos de Arnold Schwarzenegger, este afirma abertamente que “odeia o plano B”, uma vez que retira a energia necessária para alcançar um propósito que, com esforço suficiente, se pode alcançar. Esta é, aliás, uma retórica comum entre os atletas de alta competição, o 1% do 1%, os ídolos inspiram multidões de que o sucesso deve exclusivamente a hard work dedication.
O problema parece-me claro, a amostra que nos chega é tendenciosa. Apenas ouvimos aqueles a quem o universo distribuiu, de forma arbitrária, os talentos certos para singrar em determinada área, naquele período histórico. Raramente escutamos o pugilista que ficou em segundo lugar no campeonato nacional, sendo confrontado com poucas oportunidades e poucos meios financeiros, vendo-se obrigado a mudar de rumo.
Por outro lado, a realidade demonstra que as circunstâncias desempenham, igualmente, um papel determinante no que uma pessoa consegue alcançar. Sandel apresenta-nos alguns dados[1] sobre o acesso ao ensino superior nos Estados Unidos, referindo que um candidato proveniente de uma família com rendimento anual acima de 200 mil dólares tem uma probabilidade em cinco de atingir mais de 1400 pontos no exame SAT, enquanto alguém oriundo de uma família com rendimento inferior a 20 mil dólares tem apenas uma hipótese em cinquenta.
Aqui chegados, com duas fatias expressivas do bolo compostas pelos talentos e circunstâncias parece restar pouco espaço para os esforços — que aliás, certos autores, entendem até como o resultado de meras circunstâncias sociais e familiares favoráveis —, ideia esta central para qualquer conceção de meritocracia.
Com isto, perde-se a visão de que tudo o que aconteceu e pode vir a acontecer está profundamente interligado com as nossas ações, uma narrativa explorada pela serie recente serie da Netflix Dark. A mesma, traz a possibilidade das personagens viajarem no tempo com o objetivo de alterar certos eventos, porém, o desenrolar da história demonstra que estas tentativas eram infrutíferas. Uma interpretação subliminar possível que a serie parece sugerir é que, embora as ações das personagens sejam dotadas de um aparente livre-arbítrio, acabam por ser orientadas pelos seus desejos profundos que seriam, em certa medida, previsíveis/determinados: a mãe fará os possíveis para proteger o filho; o ambicioso que tudo sacrifica para chegar ao poder. Por outras palavras, como é referido num dos momentos mais marcantes, “podemos escolher o que queremos, mas o que queremos é escolhido por nós”.
De qualquer modo, um primeiro problema associado a esta ordem de ideias é o desfasamento entre o querer e a capacidade para alcançar o que pretendemos, tal como nos diz Tyler Durden no Filme Fight Club “Fomos todos criados pela televisão a acreditar que um dia seríamos todos milionários, deuses do cinema e estrelas do rock, mas não seremos. Estamos lentamente a aprender essa verdade. E estamos muito, muito irritados”. O segundo é uma persistência cega de que tudo alcancei e irei alcançar se deve exclusivamente aos meus esforços fomentando uma cultura de falsa sensação de mérito, que ignora o papel do acaso, das instituições e dos grupos familiares e sociais em que vivemos na construção de cada destino.
[1] Michael J. Sandel, A Tirania do Mérito – O que aconteceu ao bem comum?, Lisboa: Editorial Presença, p. 192.
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