A questão sobre qual é a parte da alma que deve comandar a nossa vida, se a racional ou a emocional já existia nos tempos mais remotos. Os filósofos gregos Platão (427-347 a.C) e Aristóteles (384-322 a.C.) são figuras emblemáticas desta discussão razão/coração. O primeiro aloja a alma no cérebro, o segundo aloja-a no coração.
Segundo consta, quem primeiro apontou o cérebro como sede da razão, da consciência e centro de todas as sensações foi o médico-filósofo Alcmeon de Crotona (aproximadamente 500-450 a.C). As suas observações clínicas e experimentais permitiram-lhe estabelecer que o cérebro regia todo o corpo, considerando-o órgão central da actividade humana, tanto psíquica como corporal. O cérebro traria à consciência as sensações através dos canais de comunicação nervosos que provinham dos órgãos sensoriais. Foi esta posição cefalocentrista que prevaleceu, transmitida ao mundo árabe e para a Europa medieval e renascentista através do Timeu de Platão.
As três partes da Alma
Platão afirma no Timeu ser a alma composta por três partes. A mais elevada e imortal, proveniente da alma do próprio universo, reside no cérebro e controla o resto do corpo. Dá-lhe o nome de logos que geralmente se traduz por intelecto ou razão. A cabeça, como um castelo, protegeria a parte imortal da alma que se manteria separada mas em contacto com as partes mortais da alma através do pescoço.
A parte mortal da alma “tem em si processos terríveis mas necessários: em primeiro lugar o prazer, incitação ao mal maior, depois, as dores, fuga das boas acções, além disso a ousadia e o temor, dois conselheiros insensatos, o apetite, difícil de consolar, e a esperança, boa sedutora. Pela mistura de todos estes elementos com a sensibilidade irracional e o desejo que tudo tenta, se compôs a alma mortal” (Platão, Timeo, 69d).
A alma mortal subdivide-se em duas: na região torácica, mais perto da cabeça, portanto, mais susceptível de por ela ser influenciado, encontra-se o coração, sede da coragem e dos sentimentos; na região abdominal, encontra-se a parte da alma “que sente apetite por comidas e bebidas e tudo o que necessita a natureza corporal”. Coração e região abdominal estariam separados pelo diafragma, músculo divisor do tronco em dois segmentos. Para aplacar os efeitos da cólera decorrente da acção do fogo sobre o coração, os deuses criaram os pulmões que possibilitariam o arrefecimento do coração.
Propositadamente a sede dos desejos, “atada como uma fera” foi colocada o mais longe possível da alma imortal, para que esta não cedesse aos seus feitiços, e junto ao fígado, órgão protector: “denso, suave, brilhante possuidor de doçura e amargura, para que a força dos pensamentos proveniente da inteligência, reflectida nele como num espelho, atemorize a alma apetitiva”. Quando a alma imortal fica ameaçada, “a amargura inata e irritada mistura-se no fígado e faz aparecer uma coloração amarelada; enrruga-o, torna-o áspero, dobra e contrai o seu lóbulo, obtura e fecha as suas cavidades e acessos, causa dores e náuseas” (Ibid. 71 bc). Aqui temos nós, uma perfeita descrição da hepatite, em pleno sec. IV a.C.! Quando atentamos contra a nossa alma o corpo adoece. Se intoxicamos a alma, o fígado, órgão depurador, sofre trabalhos forçados. Este modo de pensar encaixa perfeitamente no actual paradigma médico: psico-neuro-imuno-endocrino-fisiológico, que considera que a doença tem sempre uma origem psíquica, muito embora o Sistema Nacional de Saúde esteja orientado para a fisiologia.
“Quando, por outro lado, alguma inspiração de suavidade proveniente da inteligência desenha as imagens contrárias, a de um repouso da amargura, porque não quer nem movimentar nem entrar em contacto com a natureza que lhe é contrária, [difunde-se] no fígado a doçura que nele existe. [Esta inspiração de suavidade], endireita todo o órgão, suaviza-o e liberta-o, e torna agradável e de bom carácter a parte da alma que nele habita, e lhe autoria um estado aprazível durante a noite, e o dom da adivinhação durante o sono” (Ibid. 71 cd). Um fígado saudável, seria o espelho de uma alma bela e harmoniosa, com desejos e apetites pacificados, e um coração submetido a uma razão predominante.
Veremos, no próximo texto, o que tem Aristóteles a dizer em defesa do coração.
* Estas reflexões continuam nos Cafés Filosóficos que se realizam em Tavira e Faro. Para mais informações contacte: [email protected]