Face à direita radical, que não partilha dos nossos valores nem se alinha com os nossos interesses, o centro moderado deve propor, como foi feito em Espanha, um pacto democrático que deixe governar quem ganhar as eleições. O combate pela democracia é um compromisso de todos, e exige acima de tudo a exclusão dos radicais da viabilização governativa. Sem esse empenho, a reiteração retórica da ameaça radical é mero oportunismo socialista – que não é, de resto, uma estratégia nova. A cobiça política leva a que, para enfraquecer o centro-direita, se favoreça a direita radical.
Em 1983, enfraquecido pela inflação em subida e pela deterioração económica, o governo socialista de François Mitterrand reverte as políticas sociais avançadas no início do seu mandato no chamado “tournant de la rigueur”. Derrotas sucessivas em eleições municipais, europeias, e cantonais tornam provável um revés pesado nas legislativas de 1986. Oportunisticamente, o governo socialista altera as regras eleitorais para converter os círculos eleitorais, até então uninominais, em plurinominais com representação proporcional. A manobra foi feita para “impedir a direita de ter uma maioria esmagadora na Assembleia Nacional”, como admitiu depois o antigo primeiro-ministro socialista Lionel Jospin, mas não preveniu a vitória do centro-direita de Jacques Chirac. O que de facto permitiu foi, pela primeira vez, a eleição de 35 deputados da Frente Nacional, que vieram depois a propor, por exemplo, o regresso da pena de morte. Como disse depois Roland Dumas (Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mitterrand à época das eleições), os socialistas preferiam acreditar que a Frente Nacional, sem ser perigosa, representava apenas “tagarelice política”. Em França, foi a jogada política de Mitterrand que abriu a porta parlamentar à direita radical.
O incentivo político-geométrico a que cedeu Mitterrand é perene, dado que, para o centro-esquerda, o crescimento da direita radical é naturalmente favorável: em termos aritméticos, a consequente fragmentação do centro-direita é-lhe beneficial, enquanto, em termos político-ideológicos, alimenta um inimigo político contra o qual o combate é imperativo, sem exigir projetos alternativos ou políticas públicas sérias. Há quem, na esquerda portuguesa, tenha já percebido o valor instrumental para o PS duma forte direita radical, que consolida o voto útil à esquerda e fragmenta a principal oposição de centro. O maior vencedor da histeria socialista com a direita radical foi o próprio PS; o segundo foi a própria direita radical.
Se, em Portugal, as luminárias do PS fossem sérias acerca dos seus uivos (gritando “não passarão!”, citam a mesma dirigente do Partido Comunista Espanhol que defendeu o Pacto Molotov-Ribbentrop e a invasão da Polónia pela Alemanha Nazi e pela URSS), o primeiro passo seria evidentemente o compromisso entre todas as forças políticas moderadas. A barragem de extremistas e radicais (que não são de todo a mesma coisa) é um dever não apenas de alguns grupos, mas de todo o sistema democrático, e requer a consciência republicana de que a inviabilização da direita radical implica a sua inutilização em termos parlamentares e governativos. Dito doutra forma, exige que a viabilização de qualquer governo não passe nunca pela direita radical.
Que isto é possível mas inconveniente para o centro-esquerda oportunista e calculista ficou claro num recente debate televisivo entre Pedro Sánchez, Primeiro-Ministro espanhol e comparsa socialista de António Costa, e Alberto Feijóo, candidato do Partido Popular. Diante dos espanhóis, em direto, Feijóo dispôs-se a assinar um pacto entre os dois, viabilizando a investidura dum possível governo minoritário PSOE em troca da viabilização dum governo minoritário PP. Assim, é possível excluir a direita radical. Mas, implicando limites às manobras políticas que podem prolongar o seu mandato, Sánchez ficou visivelmente incomodado com a sugestão, balbuciando rejeições sem clarificar porque não se compromete, e não assinando a folha que Feijóo em direto lhe estende.
Um pacto democrático, ao viabilizar o governo do partido mais votado, restaura a confiança dos eleitores de que quem ganha as eleições pode governar – algo essencial em sistemas como o português ou o espanhol. Conjugando representação proporcional através de listas fechadas com círculos relativamente pequenos, obtemos um sistema político de enormes contrastes entre a magnitude dos círculos eleitorais, e onde o número efetivo de partidos parlamentares se mantém persistentemente abaixo da média da OCDE. É inegável que a prática política desde há décadas (pelo menos desde o consulado de Cavaco Silva) assenta em governos maioritários (de partido único ou em coligação), em que o Primeiro-Ministro, inevitavelmente, é ou do PS ou do PSD. Por muito que se insista que se elegem deputados, e não Primeiros-Ministros, as nossas eleições legislativas não são disputadas com base em temas locais, mas sobretudo em temas nacionais, em que o fator mais importante para explicar o sentido de voto se prende com a posição ideológica geral e a avaliação dos líderes partidários.
Ora, se o voto dum portugueses representa mais o partido que quer ver a governar ou a pessoa que prefere como Primeiro-Ministro, é evidente que cabe aos dois maiores partidos de centro, historicamente as únicas alternativas políticas, ser claros quanto à sua colaboração na barragem aos extremos. Como fez o PP em Espanha, o PSD deve propor a viabilização dum governo minoritário do PS em troca da viabilização dum governo minoritário PSD. Por outras palavras, o nosso sistema democrático exige uma recusa das geringonças, dos confusos apoios parlamentares, e sobretudo das possíveis coligações com parceiros radicais. Mas importa ter a maturidade política de admitir que isto não é apenas uma responsabilidade dos grupos “contíguos” (não confundir com “próximos”), mas de todas as forças políticas, porque implica um compromisso geral.
É do mais hipócrita exigir ao PSD que rejeite vezes sem conta infinitas variações de hipotéticos entendimentos sem assegurar o mais basilar compromisso (deixar o partido mais votado governar) ou ter a decência e maturidade de reconhecer que a barragem às forças extremistas é tarefa de todos os democratas. Como a postura socialista tem deixado claro, ou como a estratégia de partidos irmãos na França ou na Espanha já tem demonstrado, o objetivo do PS (cá como lá) não é manifestamente a exclusão da direita radical mas apenas a sua eternização no poder, seguindo a tática que lhe deu a maioria absoluta e sem se preocupar com as consequências a longo-prazo da elevação da direita radical à liderança da oposição (um resultado infeliz e até ver improvável, mas que se torna possível à medida que o centro-direita se vê incapaz de governar face à intransigência sôfrega do PS).
O combate à direita radical, como temos também aprendido em França desde 2017, não se faz através do voto num só partido salvador dotado da capacidade única de se opor ao obscurantismo através do seu despotismo iluminado, mas através do reforço dum sistema partidário democrático, assente na alternância (ou, melhor ainda, nas coligações variáveis) entre partidos moderados e comprometidos com a manutenção da República e dos seus valores fundamentais. Não sendo uma bala de prata que torna supérfluas reformas mais abrangentes do nosso sistema eleitoral, político, e judicial, o primeiro passo nessa direção é um pacto democrático que exclui a influência de partidos radicais.