Filosofia dia-a-dia
‘Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo’.
Álvaro de Campos
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, a 15 de Outubro de 1890, à uma e meia da tarde, de acordo com a sua carta astrológica. Se alguma dúvida restava, o poema Notas sobre Tavira dissipa-as de uma vez por todas: “cheguei finalmente à vila da minha infância”. Tavira celebra agora, durante os meses de Outubro e Novembro, o aniversário deste heterónimo que aqui regressou aos 41 anos de idade trazendo “o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala…”, e que só encontra algum conforto quando constata que “esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira”, pois, “estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada”. Apenas a estranheza e a desidentificação —o não ser― conferem a total liberdade para sonhar.
Álvaro de Campos surge “impetuosamente” com a Ode Triunfal que Pessoa enviou a Mário de Sá Carneiro em Junho de 1914, afirmando ter sido escrita “num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda”. Publicado no número inaugural da revista Orpheu, percebe-se imediatamente o caráter irreconciliável do poema com a obra do mestre Alberto Caeiro, heterónimo originário, de que tanto Ricardo Reis como o próprio Álvaro de Campos se consideram discípulos. A Ode Triunfal faz jus às aspirações futuristas e aos estudos de engenharia constituintes da biografia do seu autor: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/Ser completo como uma máquina!/Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!/Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto/Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento/A todos os perfumes de óleos e calores e carvões/Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!”
‘Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim’.
Álvaro de Campos
Filho desta cidade onde o rio e o mar se encontram: “todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longínquo/Da minha casa ao pé do rio/Da minha infância ao pé do rio/Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite/E a paz do luar esparso nas águas!”, as impressões da infância permeiam toda a sua obra poética. É ao ser tomado pelo “delírio das coisas marítimas” que José Gil no seu livro Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, considera que o engenheiro de Glasgow responde à fundamental questão Deleuziana de como construir o plano da imanência. Álvaro de Campos consegue-o através da cartografia da sua infância “onde coisas e espaços se dispõem segundo uma topologia própria que permite sonhar. (…) O mapa da infância torna possível jogos de devir-outro.” É a este processo que assistimos ao longo de toda a Ode Marítima: “E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!/Componde fora de mim a minha vida interior! (…) E começo a sonhar,/começo a envolver-me do sonho das águas,/Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh’alma”. Contudo, apesar dos mergulhos vitalizantes nas memórias de infância, é um timbre de fracasso e desalento que se sente predominar: “Voz de sereia longínqua chorando, chamando,/Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,/E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos…”
Relevamos que a ambição de Álvaro de Campos consistiu em “sentir tudo de todas as maneiras” e o tudo inclui tanto as sensações positivas como as negativas. Aliás, esta distinção deixa de fazer sentido para aquele que se abre a tudo sentir sem nada julgar: “Sou imparcial como a neve./Nunca preferi o pobre ao rico,/Como, em mim, nunca preferi nada a nada.” Encontramos também em Pessoa ortónimo alguns fragmentos esclarecedores: “Todas as sensações são boas, logo que não se tente reduzi-las à acção. Um acto é uma sensação que se deita fora./Age para dentro, colhendo só com as mãos do espírito as flores na margem da vida.” Ou: “Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção”. Álvaro de Campos é o herói que permanece fiel à musa da equanimidade, mesmo nas circunstância mais adversas. Não se protege, não se preserva, numa fidelidade absoluta às sensações, como podemos apreciar no magistral poema Tabacaria: “Estou hoje dividido entre a lealdade que devo/À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora/E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro”.
* As reflexões sobre os textos da rubrica Filosofia dia-a-dia continuam nos Cafés Filosóficos que se realizam em Tavira e Faro em Português e Inglês. Para mais informações contacte [email protected]