Cada um de nós olha o Natal à sua maneira, o prisma do calor familiar, o nascimento para a vida com base religiosa ou não, a partilha de encontros e troca de calor humano, tem aqui um momento alto, sob um olhar personalizado. A sociedade de consumo imiscuiu-se na natureza destas festas, alargou, por força da comunicação social, a sedução e o contágio para o aumento exponencial de compras, para o agregado familiar ou para presentes a trocar com amigos.
Há quem comece o Natal logo no dia 1 de Janeiro, eu pertenço a esse grupo, planeio a agenda dos meses para encontros, telefonemas para quem vive longe e perto, na minha idade de septuagenário é impensável confiar só na memória. Percorro mercados à procura de pechinchas e objectos que interessem às pessoas que eu amo, guardo-os ou restauro-os para fazer os outros felizes. Tenho um ano inteiro para saber quem se vai interessar por estes livros, aguarelas, desenhos, molduras, tecidos, e tantas outras coisas que podem funcionar como comprovantes de amor. Tenho igualmente o ano inteiro para mandar correio electrónico, distribuindo informação que lhes pode ser útil, não há ser humano que não goste que lhe envie notícias e informações presuntivamente úteis. Natal é encontro.
E de Janeiro passo para Fevereiro, como sou perseverante e andarilho, vou à descoberta de coisas, combino almoços, idas ao cinema ou ao teatro ou à música e reparto o Natal por cada mês do calendário, sempre com imprevistos, e de sorriso radiante. É uma forma de amar duas vezes, escutar o outro e surpreendê-lo. Evito conflitos, amarguras com cláusulas contratuais, não ando a desconfiar de como os outros me interpretam, tenho tempo para fazer o Natal com o máximo de disponibilidade. Eu sei que é um problema de convicções, tenho comigo uma certa ideia de que o Natal significa que nasço e renasço com todos aqueles com quem me vinculo, de quem preciso e a quem posso ser útil. Posso ouvir canções de Natal em Abril ou Junho, posso descontraidamente percorrer as avenidas com iluminações de Natal somente para me sentir em casa, ando num certo presépio em que em vez do bafo da vaca ou do boi sinto a respiração dos outros. Chama-se companhia e solicitude
Enfim, na chamada época natalícia ando desafogado a escrever, a telefonar, a encontrar-me sem tensões, não é possível endividar-me assim, com esta autodisciplina dos afectos perduráveis. Há muitas e muitas décadas atrás a minha mãe dizia-me insistentemente que nunca se vai a casa de ninguém sem levar uma flor, uma planta ou um sorriso. Tenho impressão que há pessoas que se esfalfam para reverter a culpa de pesados silêncios, de sentidas indiferenças, paga-se com prendas o que não se dá com atenções. Não moralizo, adopto o preceito de não me lançar na correria das compras, a partir do dia 1 de Janeiro já ando a festejar as alegrias do Natal, o que me permite isentar-me das pressões publicitárias, das promoções-choque, das tão propagandeadas alegrias de Natal e que não passam de puras relações comerciais. E dou-me bem com o sistema, na bolsa e na alma. Esbanjo-me com os outros e não tenho nada contra com este modelo de desenvolvimento pessoal.
Mas reconheço que as campanhas natalícias para sensibilização dos consumidores têm grande importância: na alimentação, cuidar da saúde e obstar ao desperdício; ponderar as compras de bens semi-duradouros, na óptica da sua utilidade, saber escolher brinquedos e fugir daqueles que podem ter alguma perigosidade… O essencial é recordar aos consumidores, sem ser directivo, que devemos assumir os limites, noção básica da sustentabilidade, exceder os limites é arriscar a economia familiar, abrir caminho a tensões dispensáveis, valorizar a prudência e as opções de escolha com critério faz-nos mais maduros. É assim que também abrimos caminho para um mundo melhor, na cidadania no consumo.
* Assessor do Instituto de Defesa do Consumidor e consultor do POSTAL