Toda a Ferida É Uma Beleza, com texto de Djaimilia Pereira de Almeida e ilustrações de Isabel Baraona, é um delicioso pequeno livro a quatro mãos onde o lirismo da prosa e os altos voos da imaginação se aliam a ilustrações de traço solto e livre, e de cores fortes como um sintomático, fogoso, raivoso e sanguíneo vermelho. Publicado pela Relógio d’Água, este romance foi agora agraciado com o Grande Prémio de Romance APE. A entrega do Prémio é amanhã, terça-feira, às 18:00, na sala 2, da Fundação Calouste Gulbenkian.
Logo de início afirma-se que se há coisa que nunca ninguém descobriu é como se diverte uma menina. E as autoras, escritora e ilustradora, lançam-se assim à descoberta do mais misterioso dos mistérios.
A protagonista é possuída por uma indomável vontade de escrever. Perdida nos seus insondáveis mundos ri-se e diverte-se sozinha. Mas a sua inocente alegria esbarra com a repressão da madrinha que a julga endemoninhada (quando as palavras lhe enchem a cabeça ela canta à lua) e não descansa até a educar: menina não escreve, não pensa, não ri. A sua incompreensão é ainda mais acicatada por não compreender o que a menina escreve – e a escrita desordena o mundo. Retirá-la da escola, proibindo-a de tocar um quadro de ardósia ou um pau de giz, não a impede de descobrir novas formas de se expressar: irá rabiscar até com a polpa da ameixa vermelha ou o roxo das amoras. À liberdade e inocência de uma criança contrapõe-se a dominação e a prisão, até a madrinha chegar a extremos de crueldade para cortar as asas da criança escrevinhadora…
«Uma coisa é certa. Aquilo a que se chama “o mundo” é uma conspiração contra a alegria das meninas, contra as meninas se divertirem e se sujarem, contra o seu gozo e as delícias e silêncios desse gozo.»
Um texto que enche a alma, numa belíssima prosa poética, ritmada, contida e rica. Uma narrativa delirantemente imaginada, sobretudo pela plena significação de que se reveste. Uma alegoria possível de tudo o que a história fez para privar a mulher do dom da palavra, do poder de expressão, do condão da livre imaginação. Uma lembrança de que é também da dor e da ferida que nasce a melhor arte.
Djaimilia Pereira de Almeida escreveu, entre outros, Esse Cabelo, Luanda, Lisboa, Paraíso e Três Histórias de Esquecimento. Recebeu o Prémio Oceanos 2019 e 2020, o Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2018 e o Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz 2019. Doutorou-se em Teoria da Literatura. Nasceu em Luanda e cresceu nos subúrbios de Lisboa.
Isabel Baraona (Cascais, 1974) é licenciada em Pintura pela La Cambre (Bélgica) e doutorada em Artes Visuais e Intermedia pela Universidade Politécnica de Valência. Em 2013, foi bolseira da Universidade Rennes 2 (França), no âmbito de um pós-doutoramento. É professora na ESAD.CR e investigadora integrada no LIDA.
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