Numa Londres alternativa nos anos 1980, quando Margaret Thatcher comete a imprudência de uma desastrosa guerra territorial pelas Ilhas Falkland, Charlie Friend usa as suas poupanças – que dariam para comprar um apartamento – num exemplar de um primeiro lote de seres humanos sintéticos, isto é, um robot com aspecto perfeitamente humano e inteligência artificial, que pode inclusive desempenhar funções de brinquedo sexual vivo, e sugestivamente designado como Adão. Charlie talvez preferisse uma Eva, mas estavam esgotadas…
«Quanto à autonomia, conseguia correr dezassete quilómetros em duas horas sem precisar de ser recarregado ou, com um consumo equivalente de energia, conversar ininterruptamente durante doze dias. Tinha uma vida útil de vinte anos. Era corpulento, de ombros direitos, pele escura, cabelo preto espesso penteado para trás; a cara era estreita, com um nariz ligeiramente adunco a sugerir uma inteligência sólida, uns olhos pensativos» (p. 12)
Charlie está apaixonado por Miranda, uma jovem estudante, que mora no apartamento por cima, envolvendo-a no processo da formação da personalidade de Adão. Mas rapidamente se percebe que a máquina pode ultrapassar Charlie, a nível intelectual, físico, e até no desempenho sexual… E apesar de Adão, a partir dos dados que colige, conseguir prevenir Charlie acerca da falsidade e complexidade de Miranda, ele próprio rapidamente se apaixonará também por ela.
Ian McEwan, um dos mais importantes autores britânicos, cuja obra integral está publicada pela Gradiva, depois do irreverente Numa Casca de Noz em que coloca um embrião a meditar sobre a Inglaterra em fase Brexit (tema a que voltou no mais recente The Cockroach, sátira a publicar até final do ano entre nós), continua a meditar sobre o futuro da raça humana nestes tempos conturbados em que a tecnologia ameaça (?) ultrapassar a inteligência humana.
Neste romance pleno de ironia, onde se compõe um triângulo amoroso com um robot, colocam-se perguntas pertinentes, que ecoam um recente livro de Mary Midgley (Para que serve a filosofia?). É a vivência interior e criativa ou os actos físicos aquilo que define a nossa humanidade? Será a inteligência humana ultrapassada pela memória de um computador vivo, com acesso a todo o conhecimento ou o que realmente importa é, antes, a nossa capacidade de raciocínio, a nossa moralidade, o espírito crítico? Pode a máquina superar o homem? Conseguirá um computador com fácil acesso a toda a literatura criar poesia com centelha divina? E se as máquinas se podem tornar os novos escravos, o que pode o homem fazer com a sua vida?
«A psicologia, outrora tão interessada nos milhões de maneiras de a cabeça dar para o torto, estava agora voltada para o que considerava emoções comuns, desde a tristeza à alegria. Mas tinha ignorado um vasto campo da existência quotidiana: sem doenças, fome, guerra ou outras fontes de tensão, uma grande parte da vida é vivida numa zona neutra, num jardim familiar, mas cinzento, sem nada de especial, imediatamente esquecido, difícil de descrever.» (p. 16)