O debate sobre cultura e patrimónios, em particular nos “media” e redes sociais, estão hoje diminuídos por dois equívocos que dificultam a compreensão dos acontecimentos descritos pela narrativa histórica que aprendemos nas escolas.
O primeiro equívoco tem a ver com a apreciação de acontecimentos remotos, sobretudo as colonizações da antiguidade e da era moderna, utilizando valores das sociedades contemporâneas, quer em relação ao esclavagismo, como ao papel das mulheres e outros direitos sociais. O outro erro é a desvalorização do património herdado, construindo uma contemporaneidade acrítica e acientífica, baseada em ideias e teorias voluntaristas, fascinada pelas novas tecnologias e o mercado global, que sublima “inovação” e “produto” como valores absolutos.
Na primeira metade do século XX surgiu uma corrente de pensamento historiográfico que contestou a legitimidade da interpretação dos factos históricos centrada apenas em fontes documentais e materiais exumados, apresentando a importância da relação interdisciplinar da história com outras disciplinas correlacionadas, como a linguística, a sociologia, a psicologia, estatística histórica ou história quantitativa, a geografia humana, entre outras,…
Surgiram estudos sobre as “mentalidades”, valores e percepções dos grupos sociais, atitudes filosóficas perante a vida e a morte, o parentesco, a propriedade, as religiões, as sociabilidades, expressões simbólicas e artísticas, cultura popular, vestuário, alimentação,… A “história das mentalidades” delimitou um novo e importante campo científico, de investigação e de análise interdisciplinar, reequacionou a clássica história social e económica.
A história narrativa produzia conhecimentos parcelares, sobrevalorizações e omissões, porque a maioria das sociedades não produziam arquivos, os cronistas eram normalmente assalariados dos biografados, o estudo centrava-se nas elites políticas e nos “acontecimentos breves”.
A esta realidade contrapôs-se a “história-problema” aberta a outras realidades.
O grupo de historiadores ligados à revista “Annales”, de que foram pioneiros a partir de 1929 Marc Bloch e Lucien Febvre, introduziu os métodos das ciências sociais na história narrativa, mostrou como os valores e comportamentos sociais têm remotas origens e continuidades. Nesta corrente importa referir a “história da longa duração”, conceito que resulta dos contributos de Marc Bloch e Fernand Braudel (1902-1985). Este historiador francês, preso pelos alemães durante a 2ª Guerra Mundial, estudou com profundidade, a partir da geografia humana e da observação das paisagens naturais e culturais, o universo mediterrânico nos séculos XV e XVI e estudou o nascimento do capitalismo, quando as economias regionais passam para o controlo do capitalismo financeiro que substituiu a economia de mercado baseada na troca.
“O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II”, tese de doutoramento de Braudel escrita na prisão ou “Civilização material, economia e capitalismo” são obras fundamentais para compreendermos a geohistória, reflexão sobre o espaço físico e humano, os valores e as práticas culturais do sul da Europa, do norte de África e do Médio Oriente, bem como o desenvolvimento do processo de colonização política, militar, económico-financeira, cultural e linguística nos séculos mais recentes.
Mas o que atrás foi referido tem a ver com a actualidade das Políticas Culturais e da Gestão Cultural? Tem tudo a ver, a evolução na contemporaneidade terá como base conhecimentos de várias proveniências e a formação dos quadros para a gestão cultural não se pode limitar a uma licenciatura em qualquer área, mas tem de ser rigorosa, abrangente e multidisciplinar.
A actual pandemia que praticamente paralisou as actividades culturais no país, sobretudo ligadas ao espectáculo ao vivo, veio pôr em evidência a fragilidade organizativa e segmentação do sector cultural. É, contudo, uma oportunidade para reequacionar a importancia da cultura nas suas diversas áreas de intervenção social e a necessidade de formação científico-técnica actualizada dos seus profissionais.
A história cultural, como outras disciplinas, tem papel fundamental como auxiliar na definição de políticas culturais correctas, em particular na renovação de discursos e práticas sobre museus, património e as artes.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de dezembro)