Filosofia dia-a-dia
Nunca podemos estar suficientemente surpreendidos de que toda a gente viva como se ninguém “soubesse” que vai morrer cedo ou tarde.
Albert Camus (1913-1960)
Toda a gente diz que tem consciência de que não vai durar para sempre. Toda a gente sabe que a única certeza que temos na vida é a de que um dia deixaremos de cá estar. A toda a gente já lhe faleceu alguém. No entanto a morte apanha-nos sempre de surpresa. Por que será? Na verdade, como dizia o meu professor de Ontologia, nenhum de nós tem um relógio cujo ponteiro dos segundos repita a cada instante: sou finito, sou finito, sou finito, sou finito. A consciência da nossa finitude é uma pseudo-compreensão. Sabemos que somos finitos mas a incerteza de quando a morte ocorrerá faz-nos viver como se ela não existisse. Comportamo-nos como se, de facto, dispusemos de todo o tempo do mundo. Procrastinamos. Pensamos que adiamos as coisas mas, na verdade, adiamo-nos a nós próprios. Viver como se não houvesse morte é uma possibilidade.
Deus está morto.
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Quando a fé no mundo que há-de vir escasseia, quando se acredita que a única vida de que se dispõe é esta de agora, torna-se imperioso viver imediatamente tudo o que não se viveu antes. Com a chamada “crise da meia idade” o tempo começa a fugir (-nos). Há quem compre uma mota de corridas, como se a sensação de velocidade conferisse, numa proporção directa, vitalidade. Há quem comece a viajar. Há quem desate a comer alarvemente. Há quem arranje amantes. De repente a morte corre atrás de nós de foice em punho. Nesse estado limite tudo é válido. Não importam os compromissos assumidos, nem aqueles que dependem de nós, sejam eles filhos, pais ou animais de estimação. A ética é uma palavra que desapareceu do vocabulário; já não há espaço para ela. A vida é vista por um funil e, de repente, nada mais importa senão nós próprios. Tudo está cheio de mim. Ou melhor, está tudo cheio da urgência de mim. Viver como se não houvesse amanhã é outra possibilidade.
Quero que a morte me encontre a tratar das minhas plantas,
sem me preocupar com elas nem com o jardim inacabado.
Michel de Montaigne (1533-1592)
Com algum humor, Montaigne sugere que se a morte fosse um inimigo que pudesse ser evitado ele seria o primeiro a recomendar a cobardia como estratégia para lidar com ela. A morte, contudo, com um sentido de equanimidade difícil de superar, tanto ceifa um cobarde como um corajoso, não distingue a criança do ancião ou o saudável do doente. Todos estamos igualmente aptos para morrer.
Montaigne propõe então que lhe retiremos o seu trunfo: a estranheza. Familiarizemo-nos com a morte. Visitemo-la muitas vezes até nos habituarmos a ela, ocupemos frequentemente as nossas mentes pensando nela. Sempre que algo inesperado acontecer, um objecto que cai ao chão, uma travagem brusca de um carro, um tropeço, pensemos: “e se a morte chegasse agora?!” Há que fazer um esforço, mesmo no meio da maior diversão, para ter presente a nossa condição humana. Nunca permitir que o prazer nos distraia e nos faça esquecer as muitas maneiras pelas quais nossa alegria está sujeita à morte, e as diversas formas pelas quais a morte ameaça arrebatá-la. Praticar a consciência da morte é praticar a liberdade. Uma pessoa que aprendeu a morrer deixou de ser escrava. Como não sabemos quando é que a morte espera por nós, esperemos nós por ela, propõe Montaigne. Esta seria uma terceira possibilidade.
Não basta preparar-se para lidar com a própria morte, há ainda que tomar consciência da perenidade de tudo o que nos rodeia: familiares, amigos, desconhecidos, animais, plantas, continentes, astros. Tudo, absolutamente tudo, sucumbirá um dia à inexorável lei da impermanência. Sabendo-o, como viver sem des-viver-se?
* As reflexões sobre os textos da rubrica Filosofia Dia-a-Dia continuam nos Cafés Filosóficos que se realizam em Tavira e Faro. Para mais informações contacte [email protected]