Quando publiquei a pequena análise dos convívios dos veteranos de guerra, foram feitos muitos comentários, os quais me chamaram a atenção para uma realidade que passa despercebida. Retirei algumas frases desses comentários que, no seu conjunto, reflectem a situação na área psicológica daqueles que foram obrigados a participar na guerra.
Não pretendo fazer aqui um “tratado” de psicologia, nem tão pouco enquadrar as frases em teorias da psicologia, mas tão somente fazer um apontamento do que me foi possível observar.
Penso que a guerra no ultramar ainda continua, e continuará a “martelar” a memória daqueles que por lá passaram. Muitos precisaram de ajuda psicológica, mas não a tiveram porque a pátria do dinheiro pela qual sofreram não era a mesma Pátria onde nasceram e cresceram para a vida. Essa falta de assistência era premente em relação àqueles que ‘mais porrada levaram’. Após o regresso, aconteceu muitas vezes que ao viajarem de comboio se atiraram para debaixo dos bancos ao ouvir subitamente a apito dos comboios ao cruzarem-se, ou aqueles que de noite saltavam da cama à procura das armas porque nos seus sonhos estavam a ser atacados, ou ainda aqueles que se atiravam para o chão quando rebentavam os foguetes nas festas locais.
Foram muitos os traumas e são muitas as necessidades de muitos veteranos.
As frases que a seguir transcrevo são ilustrativas da complexidade psicológica actual dos veteranos da guerra. É um misto de alegria, tristeza e indignação.
A guerra ainda ‘existe’:
José Manuel Perpetua: “…. é vê-los a chorar agarrados aos camaradas mais próximos na altura, ou porque ficaram debaixo da mesma emboscada etc. Só quem por lá passou pode avaliar estás situações, …“
Manuel Pinto: “Só quem por lá passou, tantas vezes em circunstâncias bem dramáticas, poderá entender melhor estes momentos de partilha!”
As memórias do passado, as boas e as más, não se apagam, apenas se reconstroem deixando para trás alguns pormenores periféricos que o subconsciente não valorizou. Permanecem activas, na memória de longo prazo, aquelas memórias formadas por factos que marcaram a vida num certo momento e só se apagam com a própria morte.
A alegria do reencontro é tão intensa que faz chorar homens endurecidos pela guerra e pela vida.
O espírito de equipa e de família:
Miguel Pinto: “Recordar é viver, faz parte de nós existem valores que devem ultrapassar tudo.” Fiz amigos para a vida com os encontros da minha companhia”
Ildo Nunes: “A Amizade que nos une, passados que são 50 anos do nosso embarque para Angola é eterna”
O espírito de equipa começou a ser formado no início da recruta ao pertencer a um pelotão, a uma companhia e a um quartel. Essa moldura psicológica só ficou “completa” com os primeiros combates no teatro de guerra, a partir daí já não era só uma equipa, era uma família. É esse espírito de família e as amizades então criadas que ainda hoje permanecem na memória. Só se criam “raízes” quando existem momentos de entreajuda e de convivência.
A satisfação e o desejo do reencontro:
Luis Arouca: “sempre que se realize convívios de trás os montes ao Algarve, direi sempre presente.”
Nuno Pires de Lima: “Ao fim do dia de convívio, logo começamos a contar os dias que faltam para o próximo e já cheios de saudades.”
David Pinho: “Também gostava de participar convívios com camaradas batalhão 88 ano1961”
António Galamba Serrano: “haverá por aqui algum Combatente, ou nem tanto, da C. Caç 4145/74 formada em Viana do Castelo que me diga se aí no Norte se realizam almoçaradas/convívios do pessoal desta Companhia?”
A amizade é definida como um sentimento de afeição e simpatia, uma vontade de estar perto e de partilhar. É essa vontade que se destaca nestas frases cheias de saudade da juventude e do tempo em que sofreram juntos as agruras de uma guerra que de vez em quando levava mais um camarada.
Não são só aqueles que vão aos convívios há muitos anos, mas também aqueles que nunca foram e que perderam o contacto com os camaradas. Há uma enorme vontade de voltar a estar juntos e reviver momentos inesquecíveis.
A realidade:
Albano Costa: “Passados todos estes anos temos necessidade de desabafar sobre o nosso passado na guerra do ultramar.”
Esta ‘necessidade de desabafar’ reflecte a necessidade de não dizer nada aquando do regresso a casa porque podia ser incomodado pelo regime político, dado que para falar da guerra seriam abordados assuntos de ordem política e nunca se sabia quando estava um informador da PIDE por perto. Reflecte também a necessidade de exteriorizar as dificuldades, agruras e traumas por que passaram durante a guerra, longe da família e do meio social onde cresceram mas que nunca foram contadas porque não queriam recordá-las e até para não assustar aqueles iriam seguir pelo mesmo caminho bem como as suas famílias. Deixo aqui uma pergunta, será que esse hábito de não falar da guerra aos familiares tem alguma relação com os seus descendentes serem hoje voluntários para teatros de guerra? Apesar das condições de vida na guerra serem radicalmente diferentes, não acredito que houvesse tantos voluntários se tivessem falado algumas vezes com os seus pais e avós sobre a guerra.
A necessidade de serem ouvidos:
Zé Filipe Gonçalves: “… não fica cá ninguém para contar a história…de como as coisas realmente se passaram.”
O que fica para a história são os relatórios, os discursos, as notícias da época e os trabalhos académicos. Nunca ficam para a história os horrores, tristezas e alegrias contadas na primeira pessoa, estes só existem em apontamentos pessoais de quem tinha alguma formação académica, mas mesmo esses apontamentos se perdem no tempo.
Nesta frase transparece a vontade de cada veterano de que toda a sociedade conheça as dificuldades, indizíveis em certa época, pelas quais passaram aqueles que andaram na guerra mas que não constam nos discursos e relatórios oficiais, contudo fazem parte das suas memórias pessoais.
A consciência política:
José Manuel Perpetua: “… fomos combatentes duma guerra que não era nossa.”
António Caldeira: “Não é de monumentos, placas ou medalhas que os combatentes precisam.”
Estas duas frases reflectem, na minha modesta opinião, a verdade nua e crua de uma política anacrónica daquela época e do desprezo actual do país político sentido por todos aqueles que viveram a guerra. A aprendizagem política ao longo de quatro décadas permite-lhes reconhecer as questões de fundo que apoquentam a sociedade.
As medalhas só são importantes para a fotografia, o que os veteranos sentem é a falta de reconhecimento do seu sacrifício, materializado em algumas facilidades não monetárias.
A tristeza pelo abandono político:
José Murta: “Eles estão à espera que morram os que faltam para aí fazerem algo”
Francisco Madaleno: “… dando a nossa juventude aos parasitas políticos que nos esquecem e ignoram.… “
Jaime Saraiva: “O Presidente Marcelo fala daquilo que é mais actual … os combatentes são coisa do passado …”
Estas frases reflectem o sentir profundo dos veteranos da guerra tão claramente que me abstenho de comentar ou tentar interpretar.
Creio que o sentimento geral é de uma certa frustração por terem participado numa guerra sem nexo, por terem perdido uma parte da sua juventude e oportunidades de vida não recuperáveis. Como veteranos sentem-se menosprezados.
A psicose de guerra existe em todos nós que somos veteranos.
Nós, os jovens que fomos – treinados para obedecer e matar – estamos velhos mas somos HOMENS pertencentes a uma sociedade que queremos mais justa.
Deixo aqui um agradecimento especial aos autores destes comentários transcritos.
Daniel Graça – BCAÇ 2929 – Guiné 70/72
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